Chile vai às urnas para reformar o modelo de Pinochet
Duas grandes dúvidas se sobressaem nas eleições presidenciais no Chile, que acontecem neste domingo: se Michelle Bachelet será eleita no primeiro turno e se, uma vez eleita, poderá aplicar as reformas que prometem fazer do Chile um país menos neoliberal. A popular e carismática ex-presidente se dirige para a vitória, conforme apontam as pesquisas eleitorais.
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Márcio Resende, em Santiago (Chile)
Juan Cristóbal Cantuarias tem 18 anos, está no primeiro ano da faculdade de Direito na Universidade do Chile e milita no movimento "Esquerda Cidadã". Nestas eleições, decidiu apoiar Michelle Bachelet, candidata a um segundo mandato presidencial. Mas apoiar Bachelet vai na contra-mão da tendência entre os universitários chilenos que desconfiam da candidata e da sua coalizão que durante 20 anos governou o Chile, entre 1990 e 2010, sem alterar o modelo neoliberal, herdado do ditador Augusto Pinochet.
Juan explica à RFI, em Santiago, que o apoio não é carta branca para Bachelet fazer o que quiser. A prometida reforma educativa tem de ser como os estudantes querem.
"Nós não estamos dando um cheque em branco a Bachelet. Vamos trabalhar para que a reforma educacional seja aplicada como o movimento estudantil expressou nas ruas”, disse.
Juan confessa sentir um pouco de vergonha entre os estudantes ao dizer que apóia Bachelet, mas entende que o país vai viver grandes mudanças e que é melhor pressionar por dentro do sistema. "2014 será um ano de transformações. O Chile está mudando", acredita.
Já Camilo Ortega, de 23 anos, recém-formado em Economia pela mesma Universidade do Chile, não crê em Bachelet. Diz que a candidata está rodeada pelos mesmos empresários que sempre lucraram com a educação, a saúde e com as aposentadorias. No Chile, a saúde e a previdência também são administradas por empresas privadas.
"Não tenho por que acreditar em Bachelet. Ela diz que mudou e que agora as reformas vão acontecer, mas continua rodeada pelos mesmos que sempre lucraram", desconfia.
Camilo é a exceção que mantém vivo um sistema perverso de educação. Ganhou uma bolsa por excelência acadêmica que lhe permitiu estudar num colégio privado. Depois foi o único do seu colégio a conseguir entrar para a Universidade do Chile, a mais disputada de todas junto à Universidade Católica.
"Tive muita sorte. Creio que um direito como a educação, como a saúde ou como a moradia não pode estar sujeito à sorte", conclui.
Como no Chile não existem universidades gratuitas, Camilo deverá pagar 200 dólares por mês pelos próximos 20 anos pelo crédito que conseguiu com um banco para estudar numa universidade estatal. O crédito tem o aval do Estado. As massivas manifestações estudantis de 2011 só conseguiram que os juros baixassem de 5,8% a 2% ao ano.
"Devo tanto dinheiro que prefiro não me preocupar. É dinheiro perdido. Quando eu tiver 30 ou 40 anos, será dinheiro que não estará em casa para a família e para os filhos", projeta.
No Chile, só entra para as universidades estatais, consideradas as melhores, quem passar numa prova como o vestibular. Quem mais chances tem de ser aprovado são os alunos que estudaram em colégios particulares. E quem se formar nessas universidades terá melhores salários para o resto da vida.
Reformas à vista
Esse é o círculo vicioso da desigualdade social chilena. O modelo neoliberal no qual cidadãos são tratados como clientes e os direitos básicos são tratados como bens de consumo está no centro do debate político de oito dos nove candidatos à Presidência. O Chile também renova a totalidade da Câmara de Deputados e parcialmente o Senado.
Um lado inédito são as sete candidaturas a deputados de ex-líderes do movimento estudantil. A mais famosa é Camila Vallejo, de 25 anos, candidata pelo Partido Comunista que apoia Bachelet. Camila é o ícone das marchas estudantis e perseguida como uma rockstar pelos eleitores jovens. Esta candidata admite à RFI que, assim como os estudantes, desconfia se Bachelet vai mesmo fazer as reformas. E indica que as manifestações nas estudantis serão um elemento de pressão ao novo governo.
"A desconfiança dos estudantes e a minha é legítima. Temos de garantir que as reformas sejam cumpridas tanto do Parlamento quanto das ruas. Não perder de vista a luta social", indica.
A favorita para ganhar amanhã é Michelle Bachelet, que promete reformar tudo. Os discursos dela são como uma metralhadora de reformas: educativa, tributária, no sistema eleitoral e até reforma na Constituição.
A educação seria 70% gratuita em quatro anos e 100% em seis anos. Para isso, será necessária uma reforma tributária que eleve os impostos sobre as empresas em um ponto percentual por ano, dos atuais 20 a 25%. O objetivo é arrecadar o equivalente a 2% do PIB hoje, em 270 bilhões de dólares.
Mas a mais ousada reforma é a constitucional. O Chile é um país unitário e passaria a ser mais federal, dando autonomia às regiões. A reforma na Constituição também alteraria o sistema de representação política que impede a inclusão de minorias.
A Constituição de 1980 foi criada por Pinochet para assegurar o modelo neoliberal autoritário. O sistema eleitoral chileno é binominal e reparte o poder entre as duas grandes forças do país. Ao mesmo tempo, impõe a necessidade de maiorias absolutas para qualquer alteração. Isso garante à direita uma espécie de poder de veto por mais que perca as eleições, como agora.
A Nova Maioria de centro-esquerda, com Michelle Bachelet, deve conseguir maioria e a Aliança de centro-direita, com Evelyn Matthei, pode ficar com um mínimo histórico. Mesmo assim, Bachelet dificilmente conseguirá maioria absoluta para passar as reformas. Este é o nó do sistema chileno, amarrado por Pinochet.
Idosos e classe média
O apoio popular a Bachelet vem de dois grandes segmentos: dos idosos e da classe baixa. Quando governou entre 2006 e 2010, ela criou uma pensão básica e solidária aos idosos sem aposentadoria. Também entregou dinheiro através de bônus aos mais pobres. E no país mais machista da região, onde a Lei do divórcio só chegou em 2004, Bachelet procurou beneficiar as mulheres.
Por isso, a ex-presidente garante o apoio de pessoas como Luisa Mutis, de 71 anos. "Seria muito estranho se eu não votasse por uma mulher que fez muitas coisas por nós mulheres". Ou como a doméstica Uberlinda Horta, de 51 anos: "Ela foi muito boa com a gente humilde".
O Chile é um dos países mais desiguais do mundo. Desde 1990, quando o país recuperou a democracia, a pobreza caiu de 40 a 15% da população. O país cresce a uma média de 5 a 6% por ano, com uma inflação baixa, em torno de 2%, e com desemprego de apenas 5,7%. Mas a distribuição de renda é péssima. Os 10% mais ricos ficam com quase 40% da renda nacional e os 10% mais pobres com apenas 1%.
Existe um Chile como modelo econômico para o exterior e outro cruel para os chilenos. E foi essa ferida que o movimento estudantil expôs, fazendo a popularidade do atual presidente Sebastián Piñera rondar os 30%.
A economista Marta Lagos, diretora da Latinobarômetro, que mede a percepção social na América Latina, explica que o Chile demonstra que o crescimento econômico não é suficiente para que as pessoas fiquem satisfeitas. "Não se pede bens econômicos. Este é o fracasso deste governo: apostou que o crescimento econômico solucionaria tudo. O Chile é uma evidência de que o crescimento não é suficiente para consolidar a democracia", avalia.
A última pesquisa de opinião é de duas semanas atrás. Bachelet tinha 47% das intenções de voto enquanto Matthei, apenas 14%. A dúvida é apenas se Bachelet ganha no primeiro turno amanhã. E essa dúvida só existe porque esta é a primeira eleição presidencial com o voto não mais obrigatório e ninguém sabe ao certo quantos chilenos vão votar.
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