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Artes

Histórias de um mundo "impossível" vibram em Avignon

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A peça “Na Medida do Impossível”, de Tiago Rodrigues, leva ao Festival de Avignon, até 22 de Julho, histórias de guerra, violência e catástrofes contadas por trabalhadores em ajuda humanitária. Em palco, quatro actores, um baterista e uma tenda relatam um mundo que parece impossível aos olhos de quem assiste. A RFI falou com a actriz Beatriz Brás e o músico Gabriel Ferrandini.

Gabriel Ferrandini e Beatriz Brás. Opéra Grand Avignon, 13 de Julho.
Gabriel Ferrandini e Beatriz Brás. Opéra Grand Avignon, 13 de Julho. © Carina Branco/RFI
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A peça “Na Medida do Impossível”, de Tiago Rodrigues, volta a estar em palco em França, desta vez na 77ª edição do Festival de Avignon, dirigida pelo encenador português. O espectáculo está em cena até 22 de Julho na Opéra Grand Avignon e foi incluído na programação depois do cancelamento de “Os Emigrantes”, de Krystian Lupa, que estava em construção na Comédie de Genève. “Na Medida do Impossível – Dans la Mesure de L’Impossible” foi justamente criada em 2022, na Comédie de Genève, e surge de três dezenas de entrevistas de trabalhadores em ajuda humanitária. É um manifesto político e poético, que põe a nu um mundo impossível onde a guerra, a fome, a violência são a regra, bem distante do mundo possível onde o espectador assiste, em segurança e confortavelmente instalado.

RFI: E no final fica a música... Começa com vagas e transforma-se num tsunami. Que final é este?

Gabriel Ferrandini, Músico: É uma viagem grande todo o espectáculo, as histórias e as sensações e a questão toda emocional. A ideia base do último solo era uma coisa incrível que o Tiago pensou, que parece uma coisa simples mas que tem um impacto incrível. O som tem uma presença, no espectáculo todo com eles, mas está a servir muito as histórias e a ideia do Tiago era que o último solo tinha que ser tão arrebatador ou violento ou de ter uma presença quase solitária que as pessoas podiam durante aqueles minutos esquecer. Porque é muita coisa para digerir, não é? São muitas histórias, é tudo pesado e era uma oportunidade, quase, para as pessoas poderem esquecer aquilo que se está a passar e quando o solo acaba poderem revisitar finalmente aquilo que se passou porque o último solo é bastante físico, não tem só a ver com bateria, tem a ver com as frequências graves e estas coisas que tu sentes no corpo, não é uma coisa que tem só a ver com os ouvidos. Mas, do meu lado, é sempre uma incógnita. Eu tenho a minha estrutura, mas nunca sei muito bem o que é que vai acontecer.

Pode improvisar?

Há uma estrutura, há uma coisa que eu tenho que seguir, há um início e há um fim, mas há espaço para improvisar e cada sala é uma sala e os públicos mudam e os nossos mundos mudam. Às vezes, até pode haver problemas e eu tenho que andar à volta disso e podes encontrar a musicalidade também dentro dos imprevistos.

Uma das personagens diz: “Pode pedir ao público para imaginar, mas não se pode imaginar, é impossível imaginar. Impossível.” Quando as palavras não chegam, é mesmo a bateria que conta o indizível?

Talvez. É uma coisa mais abstracta, não é? Eu acho que todas as pessoas podem retirar ou encontrar o que quiserem dentro dos sons. O que é que cada um sente com a percussão é uma coisa bastante... não é uma coisa tão estável como um instrumento harmónico, melódico e há pessoas que ouvem o coração, há pessoas que ouvem as bombas, há pessoas que ouvem os terramotos e esse é o lado engraçado desse indizível, as pessoas encontram o que quiserem.

Até porque a personagem da Beatriz diz: “Deveria mostrar que a explosão de uma bomba faz exactamente o mesmo barulho que um coração que bate, só que é mais forte”. A bateria também faz isto?

Sim, talvez, está tudo muito misturado, acho que isto foi uma grande sorte podermos trabalhar como trabalhámos e como tivemos muito tempo juntos e fizemos a criação juntos. Para nós, é engraçado porque isto é uma questão que existe, esta conversa que estamos a ter agora, mas para nós foi sempre uma coisa... Somos cinco, não quatro e mais um, somos mesmo cinco. Então tudo se mistura.

A Beatriz Brás canta um fado que deixa uma textura densa de emoção no teatro. Porquê este fado?

Beatriz Brás , Actriz: O Tiago [Rodrigues] sabia que eu gostava de cantar e já me tinha ouvido cantar fado e estávamos uma vez em Genebra - onde foi a criação, na Comédia de Genève - estamos uma vez a beber uns copos na casa do Gabriel e o Tiago quis muito que eu cantasse para o Gabriel ouvir. Foi aí que se decidiu que este fado fazia sentido de ser integrado no espectáculo. Este fado foi integrado numa história que é real, mas as duas coisas não se ligam na realidade. Foi uma ligação fictícia que o Tiago fez, tal como outras coisas no espectáculo, outras narrativas, e penso que, tal como a bateria, dá uma outra dimensão, uma outra textura ao espectáculo, e dá também uma outra componente através de uma outra língua, de uma outra cultura que, neste caso, é a portuguesa. Eu não falo em português no espectáculo, falo em inglês, mas acho que através deste fado podemos adicionar mais outra língua que acho que também é uma coisa que interessa ao espectáculo, esta multiculturalidade. Portanto, acho que é um momento também abstracto porque é musical, mas também sobre o medo. O conteúdo do fado fala sobre o medo e, portanto, está relacionado com o espectáculo e sobre os desafios que estes humanitários atravessaram.

O que quer dizer “Na medida do impossível?”

Eu acho que isto brinca um pouco com a expressão “na medida do possível” e o Tiago pegou nesta expressão e faz aqui o paralelo entre o mundo possível e o impossível. Sendo que no próprio espectáculo ele próprio comenta este lado redutor do lado binário das coisas. Não é só os opressores e as vítimas. Não é só o possível e o impossível, as coisas não são preto ou branco. Mas podemos brincar com estes conceitos e ao brincar com eles podemos ver que, se calhar, há lugares em que temos um conforto como este aqui - estamos em Avignon a ver um espectáculo, confortáveis - e temos lugares em que as coisas parecem de um mundo mais distante do nosso, um bocado um mundo impossível, em que faltam os bens necessários, em que as catástrofes acontecem no dia a dia com uma regularidade que não é a nossa, numa realidade que não é a nossa. Então, acho que há este paralelo entre o mundo possível e o impossível, sendo que o possível se pode tornar impossível muito facilmente.

E a qualquer momento...

E a qualquer momento, sim.

Descrevem situações limite e conflitos muito para além do que os olhares do mundo ocidental estão habituados a ver. Quais é que foram os maiores desafios neste trabalho de actor?

Manter a simplicidade que o espectáculo exige. O desafio para mim é manter-me com as histórias, ouvir a história que estou a fazer, ao mesmo tempo estes textos não têm um lugar sagrado. Nós pegamos em relatos reais de trabalhadores humanitários mas isto é um espectáculo e há que ter também a liberdade para jogar, para dar outras texturas, dar outra força, brincar com os tons e podermo-nos distanciar daquilo que vivemos que foram as entrevistas com estes trabalhadores, com todo o respeito. Para mim, o desafio é o equilíbrio entre manter a simplicidade, dizer só esta história, mas também poder encontrar-me através disto. Ou seja, o que eu quero dizer é: eu tenho esta imagem desta personagem que estou a fazer mas, entretanto, já não é sobre esta pessoa, eu tenho estas palavras e agora como é que eu me relaciono com estas palavras sendo que é uma realidade que não é minha, eu nunca vou poder saber, mas como é que isto ecoa em mim.

Apesar de a distância ser supostamente o seguro de saúde mental do actor quando representa algo impossível, como é que se sai de uma peça destas enquanto pessoa?

Eu acho que me empresta um distanciamento aos meus problemas - que são legítimos, mas são os meus problemas - e poder revisitar estas histórias de cada vez que fazemos este espectáculo é como ganhar outra perspectiva. Eu não deixo de ter os meus problemas, mas sei que há outras coisas a acontecer no mundo. Isso é importante para ganhar outra dimensão.

Quando houve as entrevistas aos humanitários, vocês participaram todos ou foi só o Tiago Rodrigues?

Não, não. Participámos todos. Sim. Inclusive o Gabriel.

Como é que foi esse processo? Também deve ter sido muito duro...

Gabriel Ferrandini: Pois, é impossível ficar indiferente, não é? Nós, na altura, acho que foram duas ou três semanas só de entrevistas, e teve o seu lado quase meio jornalístico incrível e também teve um lado meio horrível porque ou são pessoas a explodir ou crianças a morrer... Lá está, nós tocamos neste material e estamos à procura de nós mesmos, mas eu acho que de certa forma também mudou-me um bocado. As pessoas que nós conhecemos, as histórias que nós ouvimos e a responsabilidade agora de ... Porque não é uma apropriação, ou pelo menos estamos a tentar que não seja, mas é uma responsabilidade muito grande porque estas pessoas, muitas delas, não têm voz e nós vimos o quão disponíveis e fascinadas elas estavam de finalmente haver pessoas que querem ouvir. E a própria peça fala disto. Como aquela história da família, eles estão a beber copos e, de repente, quando conta uma história, a festa acaba. E estávamos ali nós super disponíveis para ouvir estas histórias.  De repente, agora, vens aqui, e isto tem um peso brutal e esse peso foi-nos transmitido, não é?

Falou da responsabilidade. A peça insiste na ideia de que “Vou salvar o mundo; não posso salvar o mundo; o mundo não pode ser salvo”. A peça, em si, pode salvar alguma coisa?

Isso acho que é a grande questão sempre da arte e desta coisa de - eu nem sei se isso existe - de salvar ou não salvar. Porque o salvar o mundo é uma coisa demasiado gigantesca e abstracta. Só que aqui, de repente, não é. Realmente estamos num palco, estamos duas horas num palco e eu estou em palco. E as pessoas estão aqui e esse momento de troca é mesmo real. E não há volta a dar e é aí que vem a responsabilidade. Eu estou aqui a falar sobre isto e eu tenho mesmo que falar sobre isto. Eu lembro-me das caras das pessoas com quem estivemos e lembro-me da cara da Beatriz quando ouviu uma história. Todos nós estávamos não só a ouvir isto, mas também a ter estas coisas dentro de nós e isto depois é este tal jogo de como ser mais ou menos fiel à realidade. Mas, de repente, isto é uma cena completamente humana. Estamos a falar de hipocrisia, de desespero, de esperança, de depressão. Isto não é só deles, dos humanitários. Isto é uma coisa comum a todos nós, não é?

Até que ponto é finalmente ético fazer um espectáculo sobre o sofrimento dos outros?

Esse é o lado perverso da arte, não é? Ou pode ser. No fim estamos a ser aplaudidos. Na sociedade do espectáculo é um bocado impossível fugir ao aplauso. Este um espectáculo. É importante ter esse pudor, esse respeito, sem ter a questão “Coitadinhos, são os humanitários, temos de ter um respeito e não se pode brincar com isto ou não podemos ter a liberdade para também a partir daqui extravasar para outros sítios”. Claro que sim. Eu acho que é assumir que essa perversidade existe. Há pessoas que estão confortáveis a ver um espectáculo. Nós não estamos a viver a catástrofe do outro, mas podemos ter compaixão, podemos ouvir, podemos escutar outras realidades, ter acesso a elas sem, por isso, ser perversos, sem por isso desejar mal ao outro ou lucrar com isso no sentido mau da palavra.

Também podemos sair transformados de um espectáculo...

Beatriz Brás: Claro que sim, mas isso aí não está no nosso controlo.

Gabriel Ferrandini: Estamos a tentar, não é?

Beatriz Brás: Sim, isso é discutível, mas sim, claro.

Gabriel Ferrandini: É uma questão interessante e, se calhar, não respondendo directamente, mas há uma coisa que o Tiago é de uma inteligência fora do normal e esta coisa do Impossível tem um bocado a ver com isso, que é: se nós dissermos a guerra aqui ou a catástrofe ali ou os coitadinhos dali ou os corajosos dali... O Tiago põe o carimbo do Impossível: nós fomos ao Impossível, nós viemos do Impossível e esse jogo é, na verdade, a dizer que estamos todos a sofrer, eu acho que a peça está a tentar falar disso. Isto, no fim do dia, até pode nem ser sobre os humanitários. Estamos a falar sobre desespero humano porque ele diz “há crianças”, mas crianças de onde? O que é que aconteceu? Não estamos a dizer a geografia. Quando o Tiago, de uma forma incrível e muito elegante, agarra nesta coisa do Impossível, eu acho que está a aproximar em vez de nos estar a afastar. Não deixa de ser uma coisa política, mas sem falar sobre as ferramentas muito exactas, está a falar do “backstage”.

Como é que se transporta todo esse desespero, toda essa desilusão para a música? Como é que compôs para este espectáculo?

Para ser sincero, eu hei-de ter uma coisa que há-de ser a minha linguagem. E as coisas que eu opto por usar e não usar e, no final, foi só uma espécie de adaptação de uma parte do que eu faço com este tipo de material. O mais incrível e a grande lição que eu tive aqui - porque é sempre um grande medo de cair numa coisa muito estética porque se pode cair num vazio - aquilo que a mim ajudou mesmo para fazer aquilo que viste hoje são as histórias. Portanto, é o lado emocional de como é que eu me senti e não precisa de ser uma coisa tipo: “Ah, estão a falar de uma bomba e eu faço um som de uma bomba.” Não. Como hoje, foi um espectáculo que eu acho que correu-nos bem e saímos, pelo menos eu, meio emocionado, electrificado porque são estes momentos raros, são estes pequenos milagres de perceber que realmente isto vem tudo do mesmo sítio, aquelas pessoas com quem nós falámos, a música que eu quero fazer, as coisas que o Tiago está a tentar falar, o fado a falar sobre o medo. A Amália Rodrigues já escreveu isto há...  Isto está tudo ligado, não é? E, para mim, foi mesmo muito natural chegar a este sítio que viste hoje.

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