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Um ano depois das explosões no porto de Beirute, nada mudou no Líbano

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Faz esta quarta-feira um ano que se deram as explosões no porto de Beirute que causaram mais de 200 mortos, 6.500 feridos e destruições de que ainda hoje a capital libanesa não recuperou num contexto agravado pela pandemia, a crise social, económica e política.

Um ano depois, os edifícios junto ao porto de Beirute estão prestes a ruir e a reconstrução não avança.
Um ano depois, os edifícios junto ao porto de Beirute estão prestes a ruir e a reconstrução não avança. © RFI/Thibault Lefébure
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Um ano depois do sucedido, para além do facto de estas explosões terem sido provocadas pelo armazenamento inadequado de nitrato de amónio, um material altamente inflamável, pouco mais se sabe, as investigações não tendo apurado até ao momento as responsabilidades.

Num relatório divulgado nesta terça-feira, a Human Rights Watch acusou as autoridades governamentais, militares e aduaneiras de "negligência criminosa" na gestão da referida carga armazenada desde 2014 no porto de Beirute. Neste documento em que se reclama uma investigação independente da ONU, assim como sanções contra os responsáveis libaneses, estes últimos são acusados de terem sabotado o inquérito. No mesmo sentido, outra ONG de defesa dos Direitos Humanos, a Amnistia Internacional, fala quanto a si de "obstrução deliberada" por parte das autoridades libanesas no que tange à investigação sobre o sucedido.

Paralelamente, apesar de a rua ter expressado o desejo de ultrapassar os diferendos comunitários no intuito de formar um governo e sair da crise, isto antes mesmo das explosões da capital libanesa, o país permanece sem rumo, lamenta Roberto Khatlab, historiador ligado à Universidade Saint-Esprit de Kaslik (Cecal-Usek), nas imediações de Beirute. "Continuamos sem governo. Agora foi nomeado um novo Primeiro-ministro e estamos ainda na esperança de que ele vai conseguir formar um gabinete e ter as reformas que tem de fazer no Líbano, especialmente porque é com estas reformas que o Líbano vai receber uma ajuda internacional", sublinha o universitário.

Questionado sobre o impasse político e a obstrução deliberada de que são acusados os responsáveis políticos libaneses, nomeadamente pela França mas igualmente pelas Nações Unidas, Roberto Khatlab recorda que "o antigo Primeiro-ministro, Saad Hariri, que ficou durante meses, não conseguiu formar governo" e que "agora colocaram um outro Primeiro-ministro que já foi duas vezes Primeiro-ministro, Najib Mikati, que inicialmente se mostrou seguro de que tinha apoio externo e que iria formar um governo tecnocrata e de que tudo iria dar certo" mas que "no segundo dia, apresentou ao Presidente uma lista de ministros que poderiam formar o governo e aí já começaram as paradas por causa de pastas e ministérios que tal partido quer, tal comunidade religiosa quer".

Na óptica do historiador, "voltamos novamente ao que estava a acontecer com Hariri, ou seja, não conseguia formar governo porque existem pastas e ministérios que têm que ser para tal comunidade e a outra não aceita. Estamos sempre na mesma situação e o pior é que estamos a enterrar-nos cada vez mais e o povo é que está a pagar caro."

Relativamente à preconização da comunidade internacional no sentido de se formar um governo de tecnocratas que nada tenha a ver com comunidades religiosas ou partidos políticos, o historiador observa que "quando começou em 2019, a revolução diluiu-se com a pandemia. Já estamos há dois anos nesta questão de reforma e nada se decide e estamos no mesmo lugar político e economicamente cada vez pior". Roberto Khatlab considera que "falta vontade de formar esse governo de tecnocratas, fazer as reformas necessárias para receber essa ajuda que a comunidade internacional está pronta a oferecer", o historiador ressalvando que este apoio só deveria ser disponibilizado "desde que tenha um resultado e que essa ajuda não vá para uma parte da sociedade como sempre aconteceu. A comunidade internacional está com toda a razão de não ajudar desde o momento em que não se faça essa reforma".

Aludindo à origem das explosões há um ano no porto de Beirute e à "negligência criminosa" de que a Human Rights Watch acusou a classe dirigente libanesa, Roberto Khatlab recorda que a população "fez tantas manifestações para saber algo dessas explosões, como também sobre assassinatos que aconteceram no Líbano depois das explosões e ninguém teve resposta." Do ponto de vista do estudioso, "ficam sempre contornando a questão, não apresentam quem é o culpado e nem apresentam uma solução, porque há grupos que preferem essa falta de governo porque podem agir muito mais facilmente, ou então grupos que pensam no partido ou na comunidade e esquecem que há 'um Líbano' hoje."

Para o professor universitário, "por causa de algumas pessoas, alguns grupos, o país está parado e muita gente está a passar fome. Muitas pessoas trabalham de manhã para comer à tarde. Pessoas que trabalham como táxis, não têm mais condições, não têm nem mesmo gasolina. Não há diesel para os geradores de electricidade, não há gás. Quando se vai à farmácia, não há mais medicamentos. Há pessoas que precisam de tomar remédio para sobreviver e não encontram. E quando encontram, são preços absurdos."

Ao dar exemplos das dificuldades atravessadas pelos libaneses no seu quotidiano, Roberto Khatlab dá conta da situação de um próximo que é diabético, que "tem de tomar insulina e não encontra mais insulina na farmácia" e cita também o caso de "uma menina de 9 anos de Baalbek que morreu na semana passada porque foi picada por um escorpião, foi levada ao hospital e não tinha nenhum remédio para tratá-la. A menina morreu por falta de atendimento médico e várias outras pessoas estão a morrer hoje por falta de medicamentos".

Expressando-se sobre as suas expectativas relativamente à conferência internacional sobre o Líbano organizada esta quarta-feira pela ONU e a França, o universitário mostra-se algo céptico. "São sempre bem-vindas as doações, especialmente neste momento", começa por referir. Mas ao recordar que "há pessoas perto do porto de Beirute que continuam sem casa ou cuja casa está sem tecto, há pessoas que moram ainda dentro de casas em ruínas porque não têm condições", Roberto Khatlab vinca a necessidade de se operar uma reforma, no sentido de fazer chegar a ajuda internacional ao Líbano e que ela "possa mesmo levantar o país". Mas para tal, conclui o estudioso "é preciso a boa vontade desses grupos que tentam impedir que o Líbano seja forte".

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