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Legislativas: “Vitória” da esquerda e “desgaste” de Macron

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A aliança de esquerda e a coligação que apoia o Presidente francês ficaram taco a taco na primeira volta das legislativas em França. As projecções podem ser lidas como “uma vitória” da união de esquerda e como um “grande desgaste do Presidente da República e do seu partido”, considera Diogo Sardinha, investigador da Universidade de Lisboa. O antigo presidente do Colégio Internacional de Filosofia, em Paris, faz aqui a análise da primeira volta das legislativas deste domingo.

Primeira volta das eleições legislativas em França. Paris, 12 de Junho de 2022.
Primeira volta das eleições legislativas em França. Paris, 12 de Junho de 2022. © AP
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14:14

Entrevista Diogo Sardinha

A primeira volta das eleições presidenciais deste domingo mostra que a união de esquerda [NUPES] já conseguiu “mudar consideravelmente o panorama eleitoral” em França, explica Diogo Sardinha, investigador da Universidade de Lisboa e antigo presidente do Colégio Internacional de Filosofia, em Paris. A formação política que apoia o Presidente Emmanuel Macron [Ensemble] teria tido uma vantagem de 21.000 votos [nos 23,3 milhões de eleitores que votaram] sobre a aliança de esquerda, a qual já contestou as projecções oficiais. Os dois blocos estão taco a taco e o partido do Presidente arrisca-se a perder a maioria absoluta no Parlamento no próximo domingo. A primeira volta fica, ainda, marcada por uma abstenção recorde e pela subida da extrema-direita. Como ler estes resultados e o desinteresse dos eleitores pela primeira volta das legislativas? O investigador Diogo Sardinha dá-nos algumas das pistas para entender este escrutínio.

 

RFI: Os resultados da primeira volta mostram a Ensemble, formação política que apoia o Presidente, praticamente empatada com a NUPES, a aliança de esquerda. Que leitura faz deste resultado?

Diogo Sardinha, investigador da Universidade de Lisboa e antigo presidente do Colégio Internacional de Filosofia, em Paris: A primeira imagem que tenho é que esta união de esquerda consegue - até um certo ponto e apenas no primeiro turno das eleições, resta saber o que acontecerá no segundo turno – inverter ou, pelo menos, mudar consideravelmente o panorama eleitoral. A primeira pergunta que se faz é: imagine-se o que teria acontecido se no primeiro turno das eleições presidenciais tivesse já havido uma antecipação desta união de esquerda. O cenário eleitoral do segundo turno teria sido completamente diferente. Ora, é mais ou menos o que se passa agora numa outra escala.

Primeiro, é preciso saber que os resultados nacionais não têm importância concreta neste caso. O que conta são os resultados das circunscrições. Para isso, vamos ter de esperar a segunda volta. O que é importante é realmente esta mudança de cenário em que vemos o partido do Presidente (e o partido que tem a maioria parlamentar) altamente contestados por aquilo que aparece agora como a segunda força eleitoral e que é o resultado desta união de esquerda que é inédita em França nos últimos 40 anos.

O líder da NUPES, Jean-Luc Mélenchon, tinha pedido aos eleitores logo depois da primeira volta das presidenciais para irem massivamente às urnas e fazerem com que ele chegasse a primeiro-ministro. Segundo as projecções, isso não deverá acontecer, mas poderá retirar a maioria absoluta à força política que apoia o Presidente… Vitória ou não para Jean-Luc Mélenchon ?

A mim parece-me uma vitória na medida em que esta união de esquerda era impensável até há poucos meses. O facto que um Partido Socialista completamente esmagado eleitoralmente, um Partido Comunista reduzido a uma percentagem ínfima em comparação com aquilo que foi no passado, um partido ecologista que não se consegue impor por si mesmo, que esses partidos tenham aceite reunir-se em torno desta coligação e da figura do Mélenchon, isto parece-me realmente inédito e até certo ponto inesperado. Portanto, nesse aspecto já é uma vitória nessa área política e para esse espectro político.

Os resultados, até agora, aparecem realmente como mostrando um grande desgaste do Presidente da República e do seu partido e o surgimento de uma nova força. Agora, que essa força consiga chegar ao resultado esperado e para o qual apela Jean-Luc Mélenchon - uma maioria na Assembleia da República que permita ter um governo ligado a Mélénchon - o que dizem os analistas até agora é que isso será pouco provável, mas parece-me uma mudança importante e que tem que ser considerada no panorama eleitoral. E não é apenas uma mudança de curto prazo.

O Macron foi realmente um caso excepcional quando apareceu e ganhou tudo no momento da sua primeira candidatura presidencial, mas isso são momentos raros. Normalmente, as forças políticas constituem-se e vão-se impondo a pouco e pouco. Veja, por exemplo, o que se passa com a antiga Frente Nacional, agora Rassemblement National: a pouco e pouco, ao longo de décadas, vão entrando até que eventualmente conseguem aceder ao poder. Portanto, este aparecimento de uma união de esquerda que não existia há 40 anos parece-me efectivamente um fenómeno importante a considerar.

Outro fenómeno poderá ser não haver uma maioria do partido presidencial, o que era a regra até agora em França?

Com certeza. Nós assistimos aqui a uma fragmentação, contrariamente ao que se passou há cinco anos, em que o Presidente da República ganha as eleições e depois ganha o Parlamento. Ao lado dessa união de esquerda, temos agora duas forças que - é preciso dizer as coisas como elas são - são duas forças de extrema-direita, na medida em que a direita clássica liberal está também ela em grande parte esmagada. Temos agora a Marine Le Pen e o Eric Zemmour com dois discursos, o do Eric Zemmour ainda mais radical.

Mas o Eric Zemmour foi eliminado do tabuleiro político logo na primeira volta das legislativas…

Tem toda a razão, o que conta são as eleições nas circunscrições e não os resultados nacionais. Os resultados nacionais dão-nos tendências, mas essas tendências mudam. Mas veja como essa extrema-direita e o discurso do Eric Zemmour, que é um pouco o discurso de Jean-Marie Le Pen, associado ao discurso de Marine Le Pen, como essa força agora também se impõe na direita e na extrema-direita.

Portanto, temos aqui um cenário repartido em que aparecem três forças. Aquela que aparece no centro, o partido de Macron, aparece como a mais moderada e as outras aparecem como radicais. Eu pensava assim, mas olhando bem para os números, comecei a pensar que a coisa não é tanto assim. O centro aparece-nos efectivamente como moderado e isso atrai um certo número de eleitores que não querem desestabilização, já estamos todos perturbados pela pandemia que passou, agora com a guerra na Ucrânia, queremos estabilidade. Mas repare que a política do Emmanuel Macron - e é, por isso, que ele é também tão penalizado neste resultado eleitoral - é uma política radical de liberalização da economia e da sociedade. Aliás, foi o que ele prometeu porque recorde-se que o programa eleitoral do Emmanuel Macron de há cinco anos, o título do livro que ele publicou, intitulava-se Revolução. Não era obviamente uma revolução política das instituições, era uma revolução económica de liberalização dos fluxos económicos, fluidificação e isso tem gerado mais concentração de riqueza numa parte menor da população e uma penalização de grande parte da população, sobretudo a mais desfavorecida: perturbação do Estado social e eventualmente destruição de uma parte das políticas sociais.

Nesse sentido, temos aqui três grandes pólos que são de uma certa forma radicais, cada um, nas suas opções. Suceede, porém, que Emmanuel Macron nos aparece entre os dois extremos como aquele que é menos extremado ou extremista e isso, naturalmente, pode levar as pessoas a votar por ele e num certo sentido a buscar uma estabilidade. 

Às primeiras projecções deste domingo à noite, o partido de Marine Le Pen conseguia 18,9%, mais 7% que em 2017 e ela falou em resultado histórico. O que significa este resultado?

A consolidação dessa extrema-direita - antigamente em torno de Jean-Marie Le Pen, depois na figura da filha e agora dividida entre Marine Le Pen e o Eric Zemmour - essa extrema-direita tem-se instalado progressivamente no cenário político francês não apenas em resultados eleitorais, mas também, digamos, numa certa mentalidade que depois se repercute nesses resultados. Portanto, não é uma questão de vitória, neste momento. A vitória que tem conseguido esse espectro político é a vitória da integração no circuito político como se fossem forças políticas como as outras, quando na verdade não são.

Banalização da extrema-direita?

Banalização no sentido francês é passar despercebido, como dizemos que polícia à paisana é a polícia banalizada. A banalização em português quer dizer que se torna indiferente, que se torna corriqueiro. Ora, a entrada no espectro político da extrema-direita não é corriqueira. É preciso saber que são forças radicais e há uma certa população que vota e continua a votar por Emmanuel Macron e não quer votar, talvez, nessa união de esquerda porque quer evitar o discurso nacionalista que é esse grande sentimento de fundo nacionalista dessa extrema-direita.

Nesse sentido, o discurso de Emmanuel Macron sobre a Europa é proveitoso, quer dizer, rende-lhe proveito a ele, Emmanuel Macron, na medida em que historicamente quando olhamos para a Europa há duas possibilidades: uma possibilidade de uma paz negociada com todos os defeitos que possa ter ou o discurso do regresso às Nações, aos valores nacionais, à pátria, ao patriotismo e a médio prazo, às guerras. Portanto, há uma parte da Europa que ainda não esqueceu o trauma e os efeitos desse discurso nacionalista. O discurso nacionalista nesse sentido não se tornou banal, quer dizer, ele torna-se mais aceite numa camada da população, mas suscita felizmente muitas resistências da parte de uma outra população.

No entanto, apesar dessas resistências, tivemos uma abstenção recorde de 52,3%, ou seja, metade dos eleitores não foram às urnas. Como é que se explica este desinteresse?

Eu posso dar a minha impressão: há muitas pessoas que estão muito descontentes com a política do Emmanuel Macron e da maioria parlamentar que o apoia. São pessoas saídas desta fase longa da pandemia que afectou muito a vida individual, a vida colectiva, a vida social e cultural, por um lado. Por outro lado, com a chegada da guerra na Ucrânia e esta instabilidade na fronteira leste da União Europeia, são pessoas que desejam acima de tudo uma certa estabilidade e os discursos tanto da Marine Le Pen quanto de Mélenchon podem parecer mais radicais – e, num certo sentido, são mais radicais, não num outro.

Portanto, há muitas pessoas que não querem dar o voto ao Emmanuel Macron porque estão profundamente decepcionadas com a política realizada e não têm vontade ou coragem para dar o voto a posições que significam uma certa mudança nas instituições e nas políticas que estão a ser seguidas. Pode haver esse desejo de uma certa estabilidade que implica o que implica, que se repercute num certo desinteresse em relação às eleições. Quer dizer, ‘vamos ver, os outros são talvez um pouco radicais, este também não é bom, vamos ver o que vai acontecer’. E é nesse sentido que lhe dizia há pouco que a entrada dessa união de esquerda pode, a prazo, mudar algumas coisas no cenário eleitoral.

A confirmarem-se estas projecções da primeira volta, vamos ter uma configuração completamente diferente da Assembleia. Já há analistas a falar em caos político…

Bom, muitas analistas vivem de dizer muitas coisas que não sabem. E não sabem o que é que vai acontecer depois do segundo turno. Mesmo numa assembleia fragmentada, historicamente houve soluções muito diferentes. Claro que pode haver uma entrada num período de instabilidade institucional, mas também podem existir soluções. Portugal, nesse sentido, é um bom exemplo com o que chamou geringonça: uma união, uma maioria parlamentar de partidos que, em si mesmos, eram minoritários nos resultados eleitorais e afinal transformou-se numa solução de estabilidade.

Uma geringonça em França poderia funcionar?

Eu não sei, mas o que lhe posso dizer é que nós podemos falar daquilo que sabemos até agora e podemos falar de tendências porque também pode haver muito interesse em dizer ‘atenção, é preciso votar num certo partido ou num certo movimento para evitar o grande caos institucional’. Não! As pessoas têm que votar de acordo com a sua consciência e depois cabe aos eleitos, que têm a responsabilidade das instituições, de gerirem esses resultados e caso eles não saibam criar uma certa estabilidade, devem saber que vão ser penalizados nas eleições seguintes. Essa é a regra dos regimes de democracia representativa.

Portanto, as pessoas devem votar consoante a sua consciência. Quem for eleito deve procurar a estabilidade necessária para um regular funcionamento das instituições em proveito dos cidadãos e em proveito do país e, neste caso, em proveito deste grupo mais lato que é a União Europeia, no qual a França tem um papel fundamental.

Agora, se vai haver caos, se vai haver estabilidade, se vai haver uma estabilidade imprevista ou um caos imprevisto, isso não adianta estarmos a falar agora. O que é importante agora é saber em que medida conscientemente queremos dar o nosso voto. O resto, segundo os resultados do que acontecer daqui uma semana, aí se poderão fazer juízos mais concretos.

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