Acesso ao principal conteúdo
Artes

Prémio distingue pesquisa sobre judeus de origem portuguesa em França salvos do Holocausto

Publicado a:

Em 1943 e 1944, cerca de 200 judeus residentes em França foram repatriados para Portugal e conseguiram fugir do Holocausto graças ao envolvimento de vários diplomatas portugueses. Ainda que sejam um pequeno número - quando tantos milhares não tiveram a mesma sorte – esta é uma história pouco conhecida e que foi contada pelo historiador Victor Pereira, um dos vencedores do Prémio Aristides de Sousa Mendes.

Imagem de arquivo.
Imagem de arquivo. AFP - ALEX HALADA
Publicidade

RFI: Em que consiste este Prémio Aristides de Sousa Mendes?

Victor Pereira, Historiador: É um prémio que data dos anos 90, que é atribuído pela Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses e que visa favorecer os estudos sobre a história e os estudos sobre a diplomacia portuguesa. Deram-lhe o nome de Aristides de Sousa Mendes - que é agora um diplomatas portugueses mais conhecidos da história - talvez com uma vontade de reparação porque, como sabem, o Aristides de Sousa Mendes tinha sido expulso da carreira diplomática e só foi nos anos 80 que em Portugal ele foi reconhecido e reabilitado. Então, é para os diplomatas portugueses um meio de apoiar os estudos sobre a diplomacia e de reparar uma falta que o ministério teve no passado durante o Estado Novo, durante a ditadura de Salazar.

O que é que representa este prémio para si?

Ficamos sempre muito honrados por o nosso trabalho ser reconhecido. Este é um trabalho que eu tive que apresentar, não é uma obra que já existia. Portanto, tive que o escrever de propósito para o enviar para o concurso.  É sempre agradável ser reconhecido e, sobretudo, sobre um tema que trata da diplomacia, mas também de alguns diplomatas durante a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto.

O trabalho chama-se “Derrubar o muro da indiferença e do preconceito - Os diplomatas portugueses em França e o salvamento dos judeus portugueses”.  Pode fazer-nos um pequeno resumo deste trabalho?

Durante a Segunda Guerra Mundial, havia judeus que reivindicavam a nacionalidade portuguesa e que viviam em França, reivindicação que o Estado português não reconhecia desde os anos 1910 e alguns diplomatas, cônsules, tanto em Paris como em Marselha, vão mobilizar-se junto do ministério dos Negócios Estrangeiros que, nessa época é dirigido pelo Salazar, para que essa pessoas possam ser repatriadas para Portugal e não sofrerem a deportação e uma provável morte.

Neste trabalho, fala de algo pouco conhecido na esfera pública que são os judeus que em 1913 se registaram no Consulado Português em Salónica (conhecida também como Tessalónica). Que história foi esta e porque é que não se fala disto?

Já houve alguns artigos sobre este tema. Talvez esse tema não seja o mais original da minha investigação. Houve nos anos 90 - premiado pelo prémio Aristides de Sousa Mendes - um estudo de Manuela Franco para tentar compreender como é que em 1913 judeus que vivem em Salónica, que tinha pertencido ao Império Otomano e tinha passado à soberania grega, pedem a inscrição no Consulado de Portugal em Salónica. Muitos deles pensam que foram reintegrados na nacionalidade portuguesa porque eram descendentes de judeus que tinham sido expulsos e tinham deixado Portugal a partir do século XV e XVI com a Inquisição e que tinham vivido em Salónica, que era uma cidade cuja metade da população era de origem judaica e sefardita, tanto da Espanha quanto de Portugal.

Em 1913, eles temem que com a soberania grega eles percam influência, percam direitos, sejam obrigados a, por exemplo, fazer serviço militar. Então, eles tentam procurar a protecção de outros países e alguns deles – uns 300, não se sabe muito bem ao certo - vão conseguir ser inscritos no Consulado de Portugal em Salónica com o apoio do Cônsul de Portugal em Istambul.

Disse que esta questão dos judeus que pediram a nacionalidade portuguesa por serem descendentes de judeus fugidos de Portugal quatro séculos antes, não foi a parte mais original do seu trabalho. Há uma parte, digamos, mais original nesta pesquisa?

Eu estudei no arquivo do OFPRA – Office Français pour la Protéction des Réfugiés et des Apatrides - que é a instituição em França que, desde os anos 50, reconhece a qualidade de refugiado a pessoas que saem de um país porque são perseguidas. Eu trabalhei sobre o exílio português em França antes do 25 de Abril de 1974 e fui consultar os processos no OFPRA. Então, vi os processos de portugueses e vi os de pessoas que tinham nascido em Salónica e que se diziam portugueses. Eu não sabia de todo que eram judeus de Salónica e que, aos poucos, tiveram os papéis. Tive curiosidade de ver os arquivos para tentar encontrar o rasto a essa população e o que lhe aconteceu.

Esta nacionalidade que eles reivindicam, que aparentemente lhes é dada mas vai ser contestada pelo ministério dos Negócios Estrangeiros Português durante 30 anos, mais tarde acaba por salvar alguns deles do Holocausto, mas para outros deixa-os apátridas. Antes de mais, como é que eles chegam a França e como é que esta nacionalidade portuguesa vai salvar alguns?

No início, esse assunto era um assunto dos Balcãs, ficava em Salónica. Só que muitos judeus de Salónica, nos anos dez, nos anos vinte, emigraram. Emigraram para Itália, emigraram para a Áustria,para o Brasil e muitos emigraram para França porque França tinha uma grande influência em Salónica - havia muitos jornais publicados em Salónica em francês. Então, esse problema que só existia em Salónica vai tornar-se um problema mundial e depois de 1913 vários consulados portugueses no mundo vão dizer que ‘recebemos pessoas que tinham documentos portugueses passados em Salónica e não sabemos muito bem como reagir, o que fazer. Serão eles portugueses, teremos que inscrevê-los, que lhes dar passaportes?’ É nesse período que o ministério diz ‘não se tem de dar mais passaportes…’ Mas, apesar disto, alguns cônsules,  não conhecendo bem as regras…

Ou fazendo de conta que não conheciam?...

Sim, fazendo conta que não conheciam, vão inscrevendo essas pessoas, às vezes dando passaportes, o que lhes permite circular. Tanto no tempo da I República, quanto no tempo do Estado Novo, o ministério dos Negócios Estrangeiros tenta sempre acabar com esse caso. Em 1936, há várias circulares do ministério dos Negócios Estrangeiros para tentar acabar de vez com esse caso. Quando se chega à Segunda Guerra Mundial, à ocupação de França a partir de 1940,  esses judeus muitas vezes já não tinham papéis porque o ministério não temia colocar multas ou ameaçar de expulsão cônsules que tinham passado papéis a esses judeus. Assim talvez se compreenda melhor o que é que aconteceu com o Sousa Mendes em 1940. Já é uma história que vem de trás.

Em 1940, estes judeus não têm papéis portugueses, não são franceses, não são gregos, não são turcos e são apátridas, então nenhum Estado os protege, nenhum Estado pode ajudá-los e eles temem que podem ser as primeiras vítimas de rusgas, deportações. É por isso que alguns cônsules estão conscientes disto, conscientes que se não derem papéis a essas pessoas e se elas forem consideradas apátridas, os alemães podem fazer o que quiserem com elas e ninguém vai protestar. Por isso, alguns cônsules portugueses vão tentar quer eles sejam inscritos e que a partir de 1943 sejam repatriados para Portugal. Mesmo que muitos deles nunca tenham ido a Portugal antes.

Apesar da política de Salazar, e da própria polícia política, em fechar as fronteiras aos refugiados judeus que fugiam das rusgas nazis e da deportação, houve diplomatas portugueses que salvaram pessoas. O mais conhecido é Aristides de Sousa Mendes, mas houve mais. Quem que foram eles e porque não se conhecem esses nomes?

O Aristides de Sousa Mendes desobedeceu, desobedeceu às ordens que lhe tinham sido dadas, desobedeceu a várias regras do ministério dos Negócios Estrangeiros numa altura o Salazar era ministro dos Negócios Estrangeiros.

O Cônsul de Portugal em Marselha, José Augusto Magalhães, no fim dos anos 30 inscreve e dá passaportes a judeus e recebe uma multa e o próprio ministério diz muito claramente que se ele continuar vai ser expulso. Ele próprio escreve um longo ofício ao ministério a explicar que a política que é seguida de impedir os judeus de irem para Portugal é errada, até propõe demitir-se, aliás, ele vai para a reforma nos meses que se seguem. Mas, a não ser ele, os outros tentam sempre ficar dentro das regras, dentro da lei.

Mas vão - pelo menos do que se vê nos arquivos - tentar explicar ao ministério e ao próprio Salazar que as regras podem conduzir à morte e à deportação destas pessoas. Tinha-se criado, nos anos 30, em Portugal, no Estado Novo, a imagem que havia milhares de judeus que queriam deixar a Alemanha nazi e a Áustria depois da invasão alemã; que esses judeus eram muitos; que eram perigosos politicamente. Havia no seio da polícia política alguns agentes germanófilos e próximos dos nazis que escrevem em relatórios que não se devem aceitar judeus para não criar um problema semita em Portugal. Estes cônsules tentam explicar que não são muitas pessoas, que devem ser uns 400, 500, que Portugal não vai sofrer nenhuma invasão.

Eles dizem que essas pessoas não vão ser um custo para Portugal porque muitos deles são comerciantes mais ou menos abastados - era também o grande medo do Estado português de ter refugiados que tem que hospedar e fazer sobreviver. Vão dizer, ainda, que são pessoas que não são comunistas, que não são subversivos, que são pessoas pacatas, talvez conservadoras e que Portugal não vai ter nenhum problema político - que era o grande medo do Salazar, mas também da polícia política que, a partir de 1940, tem o grande medo que os judeus que são refugiados em Portugal sejam uma ameaça à ordem e ao equilíbrio político imposto pelo Estado Novo.

Então eles, vão sempre tentando, escrevendo relatórios mais ou menos extensos e a partir de 1943,1944 conseguem que judeus sejam repatriados, que Portugal lhes dê passaportes. Também temos que ver que se Salazar é convencido é porque o rumo da guerra parece mudar. A partir de 1943, a Alemanha sofre reveses na Rússia, mas também na África do Norte e muito provavelmente Salazar vê que ajudar algumas centenas…

Quantas pessoas é que foram salvas?

Dos cálculos e das listas que eu consegui ver, foram mais ou menos 200.

Quando se fala do Aristides de Sousa Mendes diz-se que ele teria salvado milhares de pessoas.

Sim, mas no caso de Sousa Mendes foram pessoas que fugiram do norte de França, fugiram de Paris, fugiram da Bélgica, do Luxemburgo, dos Países Baixos, foram milhares e milhares de pessoas que passaram por Espanha e por Portugal.

Neste caso, era preciso negociar com a França de Vichy, negociar com a Alemanha e não havia assim tantas pessoas em França que podiam reivindicar uma inscrição, no passado, num Consulado português, tanto em França como noutro país.

Ao reabilitar a imagem destes cônsules que ajudaram alguns judeus a fugir da deportação, não há o risco que se esqueça que eles foram parte da engrenagem da ditadura portuguesa?

Por acaso, no artigo mostro o caso do cônsul de Portugal em Marselha, José Augusto Magalhães, que não pára de pedir tolerância para com os judeus - porque Marselha era uma cidade com alguns judeus e nos anos 1940, depois da deportação, tornou-se um ponto fulcral de pessoas que queriam fugir de França rumo aos Estados Unidos. Mas também mostro que José Augusto Magalhães, quando era Cônsul em Marselha, vigiava exilados portugueses, comunistas, republicanos, anarquistas, que escrevia artigos na imprensa francesa de elogios a Salazar.

Então, no caso do José Augusto Magalhães não há dúvidas. No caso do doutor José Luís Archer, que foi Cônsul de Portugal em Paris, era a mesma coisa e ele era da Legião Portuguesa. Apesar disto, eles mostraram alguma empatia e tolerância.

O motivo que pode explicar talvez é que esses judeus iam ter com eles, eram pessoas muito educadas, com algumas posses, que eram muito diferentes dos portugueses que nessa altura viviam em França - entre exilados políticos comunistas, anarquistas, republicanos ou  trabalhadores muito pobres, muitas vezes analfabetos, ou pessoas com as quais os cônsules não tinham muito interesse em estar ou em falar.

Pelo contrário, essas pessoas eram pessoas que às vezes falavam português e que eram pessoas socialmente de um meio com que eles gostavam de conviver. Há muitos estudos sobre isto, eram pessoas que não eram anti-semitas. Houve outras que eram – na PVDE, a polícia política, havia expressões anti-semitas. Houve alguns diplomatas, mas não estes, que também tiveram expressões anti-semitas. Esses parecem não ter preconceitos e vão tentando desconstruir os preconceitos.

Dito isto, depois da Segunda Guerra Mundial, veio-se dizer que Portugal foi o refúgio dos judeus portugueses, que Portugal permitiu o salvamento de milhares. O que eu deixo claro, no fim do artigo, é que houve milhares de judeus que reivindicavam uma origem portuguesa, que tinham nomes portugueses e que não foram salvos. Houve mais de 40.000 judeus em Salónica, alguns de origem espanhola, alguns de origem portuguesa, e foram deportados e Portugal não fez nada para os salvar.

Houve, ainda, o caso dramático dos judeus de origem portuguesa em Amesterdão. Alguns deles escreveram directa ou indirectamente a Salazar para tentarem ser salvos, eram mais de 4.500 e o Estado de Salazar não fez nada e quase todos -4.000- morreram na deportação.

No caso francês foi um bocadinho específico porque houve cônsules que se mobilizaram. Mas, obviamente, que não se pode tirar deste artigo a lição de que o Estado Novo tentou salvar todos os judeus de origem portuguesa. Isso não é de todo verdade e é, por isso, que eu tento realçar, com algum pormenor, o papel desses diplomatas.

 

Victor Pereira foi um dos vencedores do Prémio Aristides de Sousa Mendes com o trabalho intitulado “Derrubar o muro da indiferença e do preconceito: os diplomatas portugueses em França e o salvamento dos judeus portugueses”. O prémio foi atribuído em "ex aequo" ao trabalho de de Zélia Pereira e Rui Feijó intitulado “Descolonizar não é abandonar, mas também não é ficar: A turbulenta descolonização do Timor Português (1974-1975).

 

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe toda a actualidade internacional fazendo download da aplicação RFI

Ver os demais episódios
Página não encontrada

O conteúdo ao qual pretende aceder não existe ou já não está disponível.