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Calixto Neto dança contra o racismo em Paris

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O espectáculo de dança “IL FAUX”, do coreógrafo brasileiro Calixto Neto, é um manifesto contra o racismo e um espaço que questiona a identidade e a manipulação. Partindo do princípio que os corpos negros estão permanentemente ameaçados, Calixto Neto faz marionetas de papel que depois manipula, acabando por se transformar também numa marioneta. A peça é apresentada no Centre National de la Danse, em Paris, no âmbito do Festival de Outono, de 14 a 16 de Dezembro.

Calixto Neto, Espectáculo "Il Faux".
Calixto Neto, Espectáculo "Il Faux". © Calixto Neto/Festival d'Automne à Paris
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RFI: Como é que descreve o espectáculo?

Calixto Neto, Coreógrafo e bailarino: É um espectáculo que acontece a partir da leitura de um livro que se chama “Entre o mundo e eu”, numa tradução em português, que é de um escritor norte-americano chamado Ta-Nehesi Coates. É uma carta que ele endereça para o filho, que está fazendo 15 anos, e ele expressa várias vezes no livro que ele tem medo que o filho dele perca o corpo dele. Essa formulação da possibilidade da perda do corpo de alguém - no caso ele é um homem negro norte-americano - foi isso que me captou logo de imediato porque é uma sensação que também me foi transmitida enquanto eu fui crescendo numa periferia do Brasil.

De onde vem essa sensação? Porque é que teve esse medo de perder o seu corpo e porque é que o quis levar a palco?

Esse medo é uma coisa que me é transmitida porque é um medo da família de que eu, crescendo numa periferia de Olinda, seja confundido com alguém que cometa crimes, que a polícia me mate, que o crime me capte para a dinâmica dos gangues…

Por causa do racismo sistémico?

Exactamente. É uma constante no Brasil e nos Estados Unidos. Quer dizer, em todo lugar.

E em França?

Em França, obviamente também. Nesses três lugares, em todos os lugares, na verdade, eles se revelam de outros jeitos diferentes porque tem a ver com as histórias coloniais, com a presença das pessoas pretas nesses territórios. Esse medo da perda do corpo é uma coisa que eu consigo enxergar em várias pessoas ao meu redor, que têm o mesmo tom de pele que eu, mais escuro ou mais claro, mas que são negros e negras também. É a partir disso que acontece o espectáculo.

É a partir daí que tem a ideia de criar uma marioneta que acaba por ser o seu duplo? Várias marionetas feitas de papel, vulneráveis e frágeis…

São vulneráveis e frágeis porque são feitas de papel e são feitas de papel pardo, que é uma grande massa de gama de cores, de tons de pele que existe no Brasil e que são encaixados na categoria negro até por um movimento muito inteligente do Movimento Negro Unificado do Brasil de incluir as pessoas pardas. Aqui em França chamam “métissés”.

Mestiços.

Mestiços. O meu delírio foi essa ideia da transmissão, de como a gente cria um ser, que é o nosso duplo, que é esse ser, essa pessoa a quem a gente dedica amor e cuidado. Mas a gente também transmite a linguagem da violência, a gente também transmite as dinâmicas do medo. Então, parte dessa ideia, de criação, de transmissão e de reprodução porque são vários que são feitos desse papel que é tão barato, que é tão ordinário, que é tão pouco importante, mas que é presente.

No início, introduz a questão do papel pardo e pergunta “qual é o papel do papel”. Qual é o papel do papel neste espetáculo?

O papel do papel nesse espectáculo, enfim, a gente começa a trabalhar na matéria e vai entrando nos túneis de delírio. Então, com a cenógrafa Rachel Garcia, a gente começou a imaginar um cenário entre atelier e destroços, assim de construção, e que fosse “over-pardo”, “ overcraft” e que isso fosse se reproduzindo, se desdobrando e que começasse muito sóbrio, mas que, no final das contas, o espaço se transformasse num gesto muito rápido. O papel do papel, para mim, é essa presença constante, ele está em todos os lugares, na verdade.

Depois, há o papel da bandeira. Tem uma bandeira de França no chão e começa a descolar partes da bandeira e a colar nas unhas com as cores dessa mesma bandeira. Porquê?

Existe um código da manipulação que é que o manipulador deve aparecer o menos possível. Mesmo que ele esteja à vista, ele precisa ter uma presença neutra, uma presença que se apaga em função do movimento do boneco. É uma convenção. E eu escolhi voluntariamente deixar as minhas mãos visíveis através desse gesto de colocar as cores da bandeira. Em todos os lugares que eu vou, em todos os países onde vou dançar, a bandeira é desse país porque, para mim, tem a ver com a violência de Estado que é transmitida a esses corpos, a violência que manipula esses corpos também. É o Estado que nos manipula, eu sou manipulado pelo Estado que manipula o boneco. Existe esse ciclo para mim. Eu poderia simplesmente não colocar a bandeira e isso não daria mais essa camada…

Política?

É política e é a questão também de até onde o Estado interfere nos corpos, até onde ele vai, onde manipula.

Manipula ao ponto de o Calixto Neto criar uma marioneta, a quem vai transmitir esses mesmos medos? O Franz Fanon disse “Eu não sou o escravo da escravatura que desumanizou os meus pais”. Ainda é necessária a reparação histórica no palco?

É necessária reparação histórica em todos os lugares. Eu não sei onde não é necessária a reparação histórica neste mundo em que a gente vive hoje. A gente está num momento muito complicado na humanidade, com todos esses conflitos acontecendo em vários lugares no mundo e que são conflitos em que existe um traço racista enorme. Então eu acho que sim. Acho que a reparação histórica, na verdade, ela precisa ser feita no palco e para além do palco. Eu tenho pensado muito nisso ultimamente: não é só na cena, é também por trás da cena. É também nos bastidores. É também nos postos de direcção, nos postos de programação, nos postos onde existe poder de decisão, lugares de poder. Esses outros lugares de decisão também são muito importantes de serem ocupados.

O espectáculo chama-se “IL FAUX” que, ao mesmo tempo, é uma frase imperativa e remete para algo falso. O que quer dizer?

É uma tensão entre o imperativo e o “fake it until you make it”. Eu tenho uma certa atracção pelos jogos de palavras, eu não domino a língua francesa com maestria, então brinco ingenuamente, às vezes com as palavras. Eu gosto dos de brincar com os sons que elas apresentam. Então, para mim, tem exactamente esse jogo entre o imperativo de “ter que” porque a gente vive com essa faca apontada no peito que é: “você tem que; tem que vencer; tem que ser quieto; tem que falar alto, mas não esbravejar…”

Tem que ser uma marioneta?

Tem que ser uma marioneta às vezes, tem que sorrir para o público, tem que aprender a sorrir para o público, tem que jogar o jogo, tem que dançar bonito. E tem um lado disso que, para mim, é falso, é puro teatro. É puro teatro. A gente sustenta um teatro, então tem essa tensão entre o ter que - para responder a uma demanda do mundo - mas, às vezes, é puro teatro.

O Calixto Neto fala da repetição, do falso, de repetir o que outros também fazem, de estar a fazer “puro teatro”. Onde é que, aí, encontra a sua voz individual?

Eu acho que é nesses espaços de rebeldia. Acho que a performance e a arte são um lugar onde a gente consegue encontrar esses gestos únicos. Para mim, esta peça tem um epílogo que é aquela cena final que é muito curta e ela apareceu nos últimos dias da criação porque, para mim, era necessário uma afirmação dessa presença subversiva que são essas danças, esses movimentos, essas expressões que a gente inventa nas periferias do mundo, que é para sobreviver, para ter um espaço de escape. Então, todas essas danças que a gente conhece como danças periféricas, as danças urbanas, as danças tradicionais, são espaços de encontro consigo num lugar muito único e para além dessa injunção do “ter que”. Óbvio que são danças que também são, em algum momento, recuperadas pelo sistema, que são deglutidas...

E apropriadas?

E apropriadas, muito apropriadas, muitíssimo apropriadas. Mas elas continuam sendo esse espaço de rebeldia e um dos únicos que faz sentido habitar hoje em dia.

Até que ponto é preciso descolonizar os corpos e as danças hoje em dia?

Obviamente que é preciso descolonizar os corpos, as danças, mas para além dos corpos e das danças, existe um espaço de sensibilidade, tem um caminho, tem uma brecha, tem um espaço de interferência. Mas existem umas estruturas de poder que são muito engessadas, rígidas e difíceis de mover e, para mim, é onde está o nó da questão, onde a gente vai conseguir mudar alguma coisa.

Elas vêm ver o espectáculo?

Eu não sei se elas vêm ver o espectáculo porque eu lido com um tema que é muito franco. Pelo descritivo do espectáculo é muito óbvio, então nem todo o mundo se interessa por este tipo de discussão, mas eu acho necessário, sim. Eu, por exemplo, hoje estava muito feliz porque aqui no CND é um lugar privilegiado, com vários projectos que acontecem em paralelo. Tem um projecto de educação artística e tinha uma turma de adolescentes na plateia. Isso, para mim, é um luxo, é um privilégio poder dançar para essas pessoas e eu fico muito curioso de saber como é que reverberou, saber o que suscitou em termos de discussão. Às vezes, eu me sinto um pouco pretensioso de querer abrir discussões em cena, mas eu tenho realmente essa esperança de que as coisas mudem de algum jeito. Óbvio que é um desejo muito do momento, talvez amanhã eu mude e queira falar de outras coisas. Mas realmente sinto esse “mood” de querer abrir discussões em cena e fora dela.

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