Acesso ao principal conteúdo
Vida em França

Tom na Fazenda, "resistência" brasileira em Avignon

Publicado a:

Em palco no Château de Saint-Chamand, em Avignon, está, até ao final deste mês, Tom à la Ferme, na versão brasileira Tom na Fazenda. Armando Babaioff, que foi o impulsionador desta vinda do colectivo ao sul de França, sacrificou as suas poupanças para “continuar a exercer a profissão e continuar a levar adiante um projecto em que acredito”.

Tom na Fazenda
Tom na Fazenda © @victor_novaes
Publicidade

Uma peça baseada na obra do autor canadiano Michel Marc Bouchard e conta a história de Tom que vai à quinta da família do namorado para o funeral do mesmo e descobre uma sogra que nunca tinha ouvido falar dele, nem sequer sabia que o filho era gay. Este é só o início desta história!

Em cima da lama vermelha, em palco, Camila Nhary é Sara, Soraya Ravenle é a mãe, Gustavo Rodrigues é o irmão Francis e Armando Babaioff é Tom.

No Festival de Teatro de Avignon a RFI encontrou Armando Babaioff, que foi o impulsionador desta vinda do colectivo ao sul de França. Num discurso crítico com o actual estado da cultura no Brasil, o actor avança que sacrificou as suas poupanças para “continuar a exercer a profissão e continuar a levar adiante um projecto que acredito”.

Babaioff sublinha que Tom na Fazenda é uma peça de “resistência é uma peça que, de alguma maneira, acaba sendo um porto seguro para a classe artística, que olha para isto torce pelo desdobramento de algo que a gente nem sabe o que que vai ser. Eu joguei literalmente uma garrafa no meio do oceano e estou esperando que isso possa trazer algum fruto”.

Tom na Fazenda

Como é que surge “esta loucura” de vir a Avignon?

Isso que você falou realmente é a pura verdade, é uma loucura, é insano, mas ao mesmo tempo é o entendimento que eu, como artista, como actor, como produtor do espectáculo, tenho.

Talvez seja a melhor maneira, nesse momento, de no Brasil, continuar a exercer a minha profissão, de continuar levar adiante um projecto em que eu acredito, mesmo sem ter patrocínio algum.

É um investimento pessoal meu. Sabendo da qualidade artística, da potência que tem a nossa encenação, da direcção do Rodrigo Portela, é levar esse espectáculo adiante. Trazê-lo para cá, para Avignon, é também uma necessidade que vai muito além da minha vaidade como artista. Está directamente ligado à necessidade de apresentar o teatro brasileiro além das nossas fronteiras e, principalmente, porque nós estamos passando um momento muito delicado no Brasil, onde a cultura está realmente muito afectada. 

A leitura que eu faço deste momento é que talvez seja melhor levar esse espectáculo para fora das nossas fronteiras para continuar o nosso exercício do nosso ofício."

O espectáculo estreou no Brasil em 2017. Qual é a diferença entre 2017 e 2022?

"A diferença é muita. A diferença é que no nosso país estamos sofrendo a realidade de um governo de extrema-direita, que tem cerceado demais as nossas liberdades. A principal diferença que eu sinto, está directamente ligada à restrição das pessoas. 

No caso da cultura, no Brasil, desde que este presidente [Jair Bolsonaro] assumiu o poder destituiu o ministério. O Ministério da Cultura não existe no nosso país. O Ministério da cultura foi fadado a uma secretaria de cultura. É muito ultrajante. 

Como artista, é vivenciar uma experiência de castração, principalmente financeira, de manutenção da cultura brasileira. A gente não tem investimento.

Não têm investimento, não têm financiamento para vir, por exemplo, até Avignon. Como é que conseguem este dinheiro para ficar aqui? É caro?

"É muito caro. A moeda aqui na Europa chega a ser cinco, seis vezes mais cara do que a nossa própria moeda. Só que a gente não tem espaço no Brasil. Cada vez menos temos teatros. 

Esse investimento para Avignon é um investimento do meu próprio bolso, da minha poupança. É o dinheiro de todo o trabalho de uma vida e é por isso que eu ando tão nervoso e tão stressado.

O que eu estou fazendo, diante do cenário teatral, neste momento, é um feito. Isso que está acontecendo aqui, sentar com você e ter essa conversa é uma abertura de portas que você não faz ideia. Eu nunca imaginei que pudesse acontecer!"

Mas então, o Armando pode estar a hipotecar o seu futuro financeiro, por ter vindo a Avignon?

"Completamente. Eu poderia ter investido esse dinheiro numa temporada em São Paulo. Iria gastar exactamente a mesma coisa. A conta não fecha, eu não conseguiria de qualquer maneira, reaver esse dinheiro. 

Há 10 anos que escuto falar do Festival de Avignon. Há 10 anos que tenho um desejo de trazer alguma coisa, de vir para cá, de viver essa utopia que para nós isso aqui é uma utopia.

Posso dar um exemplo muito simples, que pra mim foi um dos gestos que mais me emocionou: nós terminamos a peça completamente sujos e dissemos para o pessoal do La Manufacture que precisávamos de um lugar para tomar banho. O Château de Saint-Chamand não tem chuveiro. Eles construíram o chuveiro. É nesse momento que eu entendo que é possível. 

Estamos falando de uma coisa que faz parte da humanidade, uma profissão milenar, que realmente deveria ser respeitada como tal."

A nível de actor. Há uma peça que foi estreada em 2017. Estamos em 2022. Qual é a diferença do Armando de 2017 para o Armando de agora?

"Eu sou outra pessoa. Essa peça mudou minha vida em todos os sentidos, me colocou num outro lugar no Brasil, como actor e produtor de teatro e tradutor. Fui convidado para inúmeros trabalhos depois dessa peça, que foi extremamente premiada no Brasil.

Fizemos 210 performances dessa peça. Eu pude experimentar algo que é muito difícil hoje em dia.

Antigamente, as temporadas no Brasil ficavam um, dois, três anos e geralmente de segunda a segunda, com duas sessões sextas, sábados e domingos. Hoje em dia, você mal consegue ficar com uma peça de sexta a domingo por três semanas. Então, isso diz muito!

Tom na Fazenda é uma peça de resistência. É uma peça que, de alguma maneira, acaba sendo um porto seguro para a classe artística, que olha para aquilo e torce. 

Você não faz ideia da quantidade de pessoas que estão torcendo por nós, pelo desdobramento de algo que a gente nem sabe o que que vai ser. 

Eu joguei literalmente uma garrafa no meio do oceano e estou esperando que isso possa trazer algum fruto. E não é só o fruto financeiro, também é, mas também é essa necessidade de mostrar este trabalho."

O Tom na Fazenda é uma peça, também, de contrastes. Qual é a grande temática, é mentira ou é homossexualidade?

O ser humano é extremamente complexo. Mas a partir do momento em que você não consegue ser quem você é, a partir do momento em que dizem que você não pode fazer determinada coisa, eu acho isso muito simbólico.

Chamo o Michel Marc Bouchard de carpinteiro, porque o que ele faz é trabalho de marchetaria. O texto é tão engendrado, é tão bem escrito que ele acaba usando a homossexualidade como o pano de fundo para falar de muita coisa. 

Não necessariamente a peça fala de homossexualidade, a peça fala de humanidade. A peça fala da dificuldade que nós temos em ser quem a gente é, fala sobre coragem, fala sobre a mentira, fala sobre essa dificuldade em ser.

Quando estreamos no Brasil, nós achávamos que seria uma peça que teria um público muito específico e nos surpreendemos. É uma peça que comunica não só a comunidade LGBTQIA+ por ter um personagem gay e por falar de sexualidade. As mulheres se identificam com o Tom, no Brasil, por conta dessa relação que existe, na forma como ele é silenciado, na forma como ele é violentado, na forma como ele é tratado naquela casa, como se fosse um objecto, algo que está sendo colocado. 

Você não precisa necessariamente de se identificar com a temática para se identificar com os sentimentos que são colocados ali. Aí é quando uma fazenda deixa de ser apenas uma fazenda e se torna numa obra universal.

Tom na Fazenda: Camila Nhary, Gustavo Rodrigues,Armando Babaioff e Soraya Ravenle.
Tom na Fazenda: Camila Nhary, Gustavo Rodrigues,Armando Babaioff e Soraya Ravenle. © Victor Novaes

Terminamos esta esta entrevista como termina o seu espectáculo: com uma bandeira do Brasil que é uma peça de arte de Raul Morão que se chama The New Brazilian Flag. É a bandeira do Brasil sem a esfera azul com as 27 estrelas e sem a inscrição Ordem e Progresso. A sua posição também é política, já o entendemos ao longo desta entrevista. Com esta mensagem, no final da peça, quer dizer que o Brasil está em retrocesso e sem ordem?

Estamos. Infelizmente estamos.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe toda a actualidade internacional fazendo download da aplicação RFI

Ver os demais episódios
Página não encontrada

O conteúdo ao qual pretende aceder não existe ou já não está disponível.