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Artes

Tiago Rodrigues: Festival de Avignon é o “combate pela liberdade artística”

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A 77ª edição do Festival de Avignon arranca esta quarta-feira e decorre até 25 de Julho com uma programação que tem como “fio invisível” a capacidade dos artistas transformarem a vulnerabilidade humana em invenção de outras formas de se viver. A descrição é feita pelo seu director, o português Tiago Rodrigues, para quem Avignon representa o “combate pela liberdade artística”.

Tiago Rodrigues, Director do Festival de Avignon. Sede do festival, 4 de Julho de 2023.
Tiago Rodrigues, Director do Festival de Avignon. Sede do festival, 4 de Julho de 2023. © RFI/Cyril Etienne
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Tiago Rodrigues é o director artístico do mais icónico festival de teatro da Europa, o Festival de Avignon, cuja 77ª edição arranca esta quarta-feira e decorre até 25 de Julho. O encenador, actor, dramaturgo português é o primeiro artista não francês aos comandos do festival e a sua primeira programação tem a língua inglesa como convidada.

No cartaz, há 44 espectáculos franceses e internacionais, 55% são assinados ou co-assinados por mulheres, nomeadamente o que abre o evento na mítica Cour d’Honneur do Palácio dos Papas da encenadora francesa Julie Deliquet, a segunda mulher encenadora a fazê-lo depois de Ariane Mnouchkine.

Tiago Rodrigues defende e repete que “é urgente a liberdade artística”, que se deve “oferecer aquilo que está no código genético do Festival de Avignon que é uma grande pluralidade de estéticas” e que cabe a Avignon criar “pontes de diálogo artístico e cultural”.

RFI: Desde 1947, a encenadora francesa Julie Deliquet é apenas a segunda mulher a abrir o festival na Cour d’Honneur do Palácio dos Papas. Porque decidiu fazê-lo?

Tiago Rodrigues, Director do Festival de Avignon: A primeira escolha foi abrir o festival com o trabalho da Julie Deliquet que é um trabalho absolutamente formidável por duas características fundamentais. Uma é a singularidade do seu trabalho com as actrizes e com os actores. É uma grande directora de actores e de actrizes que trabalha sempre experimentando, mudando a cada noite a ordem das cenas, reinventando, o que dá uma frescura vital à interpretação das actrizes e dos actores absolutamente notável. Depois, a sua capacidade de se alimentar do cinema para fazer teatro. Trata o cinema como se fosse a sua biblioteca de reportório teatral e transforma cinema em teatro, mas num teatro que é esse teatro singular das pessoas, das actrizes e dos actores, da palavra, muito próximo de um teatro de uma grande acessibilidade popular e muito íntimo com o público mesmo num espaço tão grande como a Cour d’Honneur.

Foi depois dessa escolha e do projecto “Welfare”, a partir do filme documentário de Frederick Wiseman, que nos demos conta, felizes, que era a segunda encenadora – segunda mulher francesa encenadora - a abrir o festival na Cour d’Honneur desde 1947, sucedendo a Ariane Mnouchkine, apesar de ter havido coreógrafas francesas e outras, Mathilde Monnier, Pina Bausch, Anne Teresa De Keersmaeker, que apresentaram o seu trabalho na Cour d’Honneur, mas no caso do teatro apenas duas mulheres desde 1947, o que nos dá uma medida do trabalho que ainda está por fazer. Mas não a convidámos por ser uma mulher. Ficámos foi muito felizes que a nossa escolha artística coincidisse com uma visão que é também política, com princípios e valores que defendemos.

Nesta edição, fala-se, em palco, de feminicídios e violências contra as mulheres com Carolina Bianchi e Mathilde Monnier; de racismo com os Elevator Repair Service e Rebeca Chaillon; de escravatura com Emilie Monnet; de violência sobre os Sem Terra na Amazónia com Milo Rau; de guerra e mundos impossíveis consigo… Qual é a ambição e a linha de força?

Eu julgo que nós seguimos os artistas. Esse é um dos combates do Festival de Avignon. É o combate pela criação, pela liberdade artística e seguir as ideias e os desejos e as urgências dos artistas. Portanto, não havia um tema, à partida, que procurássemos. Hoje, olhando para esta programação, há uma espécie de estrutura que emerge, um fio invisível que atravessa toda a programação, que é a capacidade que têm os artistas e as artistas de observar a vulnerabilidade humana, seja a vulnerabilidade colectiva, social, económica ou a vulnerabilidade individual, íntima, emocional, biológica, e transformar essa vulnerabilidade em criação. Olhar para a fragilidade, para a dificuldade, para a complexidade e ver aí um território fértil para a invenção e, muitas vezes, a invenção de uma fantasia, de um imaginário de outras formas de vivermos.

Encara o teatro como uma grande utopia popular, um lugar de assembleia, de união e reunião, que deve fazer pensar e agir. No seu cartaz tem espectáculos que são murros na mesa e um apelo à resistência. Que marca quer deixar o Tiago Rodrigues nesta sua primeira edição? O Festival de Avignon de Tiago Rodrigues é a afirmação de que é urgente um teatro de intervenção e contar histórias da desobediência?

Eu acho que é urgente a liberdade artística e eu acho que há artistas que têm um compromisso político, social que exprimem através da sua criação artística. Mas também há enormes artistas, muitos deles presentes também nesta programação, que não têm um discurso explícito sobre o seu compromisso artístico, embora o possam ter, mas não fazem aquilo que nós chamaríamos um teatro político.

Eu penso no coreógrafo japonês Michikazu Matsune que trabalha com Martine Pisani - grande coreógrafa francesa que está pela primeira vez no Festival de Avignon - sobre a escrita coreográfica das suas primeiras peças, agora que o seu corpo já não pode dançá-las. Por exemplo, este trabalho sobre a passagem do tempo é um trabalho que também tem uma dimensão política, mas é sobretudo poético.

Penso, por exemplo, no espectáculo “Paysages Partagés”, um espectáculo com sete espetáculos dentro, um grande passeio de sete horas na natureza, onde estão aliás, porque falamos em português, artistas portugueses. Vítor Roriz e Sofia Dias assinam uma das peças deste projeto de sete peças que não é necessariamente explicitamente político, mas obviamente que ao colocarmos a paisagem e o mundo natural no centro de um espectáculo há um compromisso com a sociedade, com o mundo, ecológico, poético que quer ser proposto ao público. É essa grande diversidade de olhares para o mundo, alguns mais explicitamente políticos, outros mais poéticos e outros ambos poéticos e políticos que nós queremos propor ao público.

Nem só de teatro é feito o Festival de Avignon. Há dança e concertos de homenagem a Lou Reed, David Bowie e Neil Young... Há uma vontade de “desierarquizar” as artes de palco?

Há uma vontade de oferecer aquilo que está no código genético do Festival de Avignon que é uma grande pluralidade de estéticas e acho que hoje, pensando numa programação para um público que também desejamos muito diverso, temos que ter a riqueza de diversidade em palco. Não podemos esperar ter uma grande diversidade de público - e quando falo de diversidade, falo de diversidade cultural, diversidade social, diversidade de origens étnicas, por exemplo - não podemos ter essa diversidade na plateia completamente se não a tivermos também no palco.

A riqueza da diversidade em palco é muito importante e aí entram as estéticas - algumas mais acessíveis, outras mais complexas - entram os temas dos trabalhos, entram os intérpretes, os corpos, a representatividade dos corpos. É muito importante também que quem está na plateia se veja, de alguma forma, em palco e se possa identificar e se possa relacionar, não se sinta a observar o outro o tempo todo, que se possa também observar a si mesma ou a si mesmo. E esse jogo de diversidades na plateia e no palco é um jogo que implica um pensamento sobre a inclusão, sobre a acessibilidade que é muito importante para nós e que toca também a programação artística.

E o lado político mais uma vez... A anulação do espectáculo “Os Emigrantes” de Krystian Lupa levou-o a apresentar o seu “Dans la mesure de l’impossible”, que também descreve situações limite na escala da experiência humana. Porquê esta peça?

Esta peça porque, em primeiro lugar, era preciso ocupar, à última da hora, um espaço deixado vazio pela anulação de um espectáculo que não conseguimos tornar possível depois de ter sido anulado na sua estreia e porque não existia. E por um motivo, para já, de ser um espectáculo que está a circular presentemente. “Na medida do impossível” em português, “Dans la mesure de l’impossible” foi mesmo agora apresentado na Roménia no Festival de Sibiu. Vai estar no Festival de Edimburgo em Agosto e, entre digressão, havia esta possibilidade de o apresentar em Avignon.

Achei que, enquanto director, convidar artistas ou companhias à última da hora para uma substituição é, de alguma forma, expor esse artista, essa companhia, a encontrar o público embora não fosse a primeira escolha. É uma substituição à última da hora. É, como nós diríamos em Portugal, para desenrascar. E se é para desenrascar, prefiro expor-me a mim a ocupar este lugar e correr o risco de ser olhado como uma escolha de última hora.

E também porque sempre disse que, uma vez que é para resolver um problema do festival, impedindo que o festival tenha um grande prejuízo financeiro ao não ter nenhum espectáculo nessas datas, eu sempre disse desde o início que o meu trabalho artístico estaria ao serviço do festival de Avignon e nunca ao contrário e, portanto, já desde a primeira edição, graças a um imprevisto infelizmente, tenho a oportunidade de o provar.

“Não basta representar o mundo, é preciso mudá-lo”, diz um dos encenadores que convidou, Milo Rau. Dá ideia que o teatro radical de Milo Rau também inspira de certa forma o teatro de Tiago Rodrigues. “Dans la mesure de l’impossible” conta situações brutais e cenas, digamos, impossíveis de ver mas que aconteceram. Um dos trabalhadores humanitários conta: “Há coisas que vemos no nosso trabalho, coisas tão obscenas, tão horríveis, que não deveriam ser mostradas em palco”… Como é que se representa o que não é representável e que impacto espera que isso tenha no espectador?

Julgo que a capacidade de evocação, de poesia, que existe no teatro permite mostrar, mas também permite fazer imaginar. Muitas vezes, nos ensaios desta peça “Na medida do Impossível – Dans la mesure de l’impossible” estávamos face, precisamente, ao impossível. Havia histórias que achávamos que não podíamos contar, mas o poder da evocação, o poder de fazer imaginar o público às vezes é mais forte do que a descrição ou mostrar uma cena. Aí entra, por exemplo, mais um português, Gabriel Ferrandini, enorme baterista, músico português, que muitas vezes está lá para nos dar em música aquilo que nós não temos palavras para descrever: muitas vezes o horror, a violência.

O festival termina consigo em palco, frente a frente com o público, com o “By Heart”, em que lhe vai ensinar, de cor, um soneto de Shakespeare. A dada altura ouve-se “A resistência são homens e mulheres que aprendem de cor livros proibidos”... Num mundo em que a memória se vai perdendo, que peso tem esta peça na sua primeira edição?

É uma peça que é talvez a minha peça mais pessoal. Eu costumo dizer que se alguém me quiser conhecer, melhor do que passar 15 dias comigo, é ver o “By Heart” durante uma hora e meia e fica a conhecer-me. É o meu cartão-de- visita, uma espécie de passaporte artístico, mas também pessoal. E é uma peça que conta a minha história também com a França. Eu criei-a há dez anos, em Lisboa, no Teatro Maria Matos, mas depois apresentei em Paris, no Théâtre de la Bastille. Desde essa altura, comecei a estar muito mais presente em França e, de alguma forma, terá contribuído, terá sido um dos trampolins que fez com que eu emigrasse o ano passado e agora viva em França e trabalhe na direcção do Festival de Avignon. Para mim, era uma possibilidade de um encontro poético, mas palpável, muito real, com o público deste festival para me dar a conhecer não apenas como director, mas também enquanto ser humano e enquanto artista.

Este ano, é a língua inglesa a convidada. Mas há apontamentos lusófonos muito fortes, como « A Noiva e o Boa Noite Cinderela” da brasileira Carolina Bianchi, o “Antígona na Amazónia” de Milo Rau, o “Black Lights” de Mathilde Monnier com Isabel Abreu e Carolina Passos Sousa. Também tem duas peças suas. Ou seja, a língua inglesa - dominante, de modo geral, - domina mesmo esta edição ou é só uma forma de contrariar a separação do Brexit e de alargar fronteiras num festival francês?

Acho que as duas coisas. Por um lado sim, a escolha da língua inglesa é uma resposta contra o Brexit, dizer que nas artes, na cultura, não aceitamos essa separação e que essas muralhas políticas serão contrariadas com pontes - mesmo que em Avignon não sejamos geniais a construir pontes porque há séculos que temos uma incompleta - mas pontes de diálogo artístico, cultural, que vamos continuar a construir com a língua inglesa, não apenas com o Reino Unido, mas com os países de língua inglesa e acho que há uma grande presença da língua inglesa, muito maior do que nas últimas décadas no Festival de Avignon.

São sete espectáculos falados em língua inglesa no festival, mas também muitos artistas franceses que se inspiram de Shakespeare, de Virginia Woolf, de Wiseman, para criar os seus espectáculos e, depois, também a presença de grandes protagonistas da língua inglesa: a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie vai estar connosco para entrevistas públicas, leituras dos seus romances, para participar numa criação radiofónica da France Culture.

 Há todo um universo de presença da língua inglesa que me parece bem palpável, bem real e muito importante para o público do festival, para afirmarmos este festival cada vez mais como um festival poliglota, um festival do mundo, que convida o mundo, mas que também constrói o mundo.

Para construir esse mundo, como é que Avignon pode ser uma utopia de teatro popular quando tudo fica tão caro, quando os bilhetes são tão caros e quando o próprio alojamento em Avignon é caro?

Os bilhetes não são caros em Avignon. Os bilhetes têm tarifas altamente democráticas. Por dez euros, um jovem com menos de 26 anos ou uma pessoa dos grupos mais vulneráveis em termos económicos pode aceder a um espectáculo. Isso significa que em Avignon, por exemplo, comparando com esse grande espectáculo que eu também gosto muito que é o futebol, esse grande espectáculo popular, em Avignon nós podemos ver oito a dez espetáculos em vez de um bilhete para ficarmos mal sentados num estádio de futebol. Isso é uma prova da dimensão democrática em termos de tarifário do Festival de Avignon.

Uma das coisas que reconhecemos é que efectivamente é difícil o alojamento em Avignon e mesmo a viagem, embora 40% do nosso público seja local. É uma ilusão dizer-se que em Avignon é uma invasão parisiense porque há mais público local do que vindo de Paris em Avignon. Mas, mesmo sabendo que mais de metade do nosso público se desloca para vir a Avignon, isso levou-nos, por exemplo, a antecipar a bilheteira em mais de dois meses. Em vez de abrirmos a bilheteira em Junho, agora abrimos em Abril, o que permitiu a muitos milhares de pessoas alojarem-se mais barato, mais cedo, comprarem bilhetes de comboio ou de avião mais cedo e, portanto, mais baratos também.

Há estratégias, embora não possamos controlar o mercado, nós estamos mais do lado do serviço público porque somos uma associação sem fins lucrativos, mas tentamos compensar com estratégias isso que é uma economia com um nível de especulação bastante assustador. Mas também estamos em conversa com a cidade de Avignon, com o poder local, com o Estado e também com os privados para encontrar modos de regulação que permitam que o Festival de Avignon continue a ser acessível ao maior número de pessoas e que, sobretudo, a questão económica não seja um travão. Foi a razão pela qual criámos o projecto, pela primeira vez, que permite que 5.000 jovens venham este Julho a Avignon com viagens, alojamento, organizados em grupo, para ver 19 espectáculos dos 44 da programação, encontrar artistas, participar em ateliers, participar em actividades de moderação cultural. Esses 5.000 jovens vão ser uma espécie de exército pacífico de descoberta deste festival porque virão pela primeira vez e se este projecto não existisse, aí sim, efectivamente, os travões económicos não permitiriam que esses jovens estivessem no festival, descobrissem este festival e descobrissem também aquilo que é vivê-lo pela primeira vez e poder ser transformado como eu fui quando o vivi pela primeira vez.

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