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Vida em França

Carolina Bianchi rebenta fronteiras do teatro para denunciar feminicídios

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Carolina Bianchi estreia-se no Festival de Avignon, de 6 a 10 de Julho, com “A Noiva e o Boa Noite Cinderela”. A peça fala de feminicídios e cria “uma antecâmara do inferno já com um pé no inferno”, explorando as possibilidades do teatro e da performance para denunciar violações quando as palavras não bastam. “Para que essas histórias sejam ouvidas”, a artista quer “re-significar imagens da dor” e um “rasgo do real” irrompe no palco. “Um exercício de política e de sobrevivência”.

"A Noiva e o Boa Noite Cinderela" de Carolina Bianchi.
"A Noiva e o Boa Noite Cinderela" de Carolina Bianchi. © Carina Branco/RFI
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17:58

Vida em França - Carolina Bianchi em Avignon

A brasileira Carolina Bianchi é encenadora, dramaturga, performer e actriz, directora do colectivo Cara de Cavalo e símbolo de um teatro radical. É movida por uma busca constante de novas linguagens que fazem pontes entre o real e o encenado, o visível e o misterioso, o consciente e o inconsciente... No seu trabalho fala sobre feminicídios, violência sexual e psicológica, sobre História, passado, tempo, memória, desejo... A sua encenação vai buscar referências da literatura, cinema e pintura, com o cinema a invadir o palco, e os seus textos esboçam tensões permanentes em narrativas não-lineares.

Carolina Bianchi apresenta o seu trabalho pela primeira vez no Festival de Avignon com “A Noiva e o Boa Noite Cinderela”, Capitulo 1 da Trilogia Cadela Força, de 6 a 10 de Julho. A peça começa como uma conferência sobre os feminicídios e arrasta o espectador para o universo infernal das violações e dos limites da arte e do teatro. Perante a violência do que é dito e pensado, caem as fronteiras entre actor-espectador e as fronteiras entre jogo de actor e realidade.

RFI: “A Noiva e o Boa Noite Cinderela” é a antecâmara do inferno? Consegue fazer-nos um resumo da peça?

Carolina Bianchi, Encenadora de “A Noiva e o Boa Noite Cinderela”: Eu acho que ela é uma antecâmara do inferno já com um pé no inferno. Acho que essa ideia de antecâmara é um pouco a ideia da peça de que quando você vai trazer questões de violência sexual, é muito difícil você chegar ao ponto. Qual é o ponto? Acho que a gente está sempre a rodear as questões, a gente está sempre quase lá, a gente está sempre porque as perspectivas nesses casos são confusas porque envolvem memória. No caso do Boa Noite Cinderela é uma violência sexual que tem a ver com essa perda da consciência, com essa perda da memória, é tudo borrado, a dificuldade de se conversar sobre esses assuntos… Eu acho que tudo isso, para mim, me leva a entender que fazer uma peça sobre isso é estar ao redor desse buraco, é se acercar da coisa, é levantar essas hipóteses, é levantar essas camadas e essas poeiras.

Quando se pensa que se está dentro do inferno, ainda se pode ir mais longe no inferno….

Eu acho que neste caso sim. É formular uma sequência numa sequência dessa entrada no inferno e como esse inferno se vai transformando dentro dele, vai adquirindo diferentes formas. A peça também tem essa ideia de que a gente está buscando as palavras, a gente está buscando esse vocabulário que é incerto quando você vai falar sobre violência sexual. É difícil você defender algo, é difícil você ter a concretude, a certeza. É tudo muito borrado, a linha do tempo desses episódios é muito complexa, tudo é muito complexo. Então, a peça busca trazer essa violência, mas também deixando que ela se manifeste na sua complexidade sem tentar resolver nada.

A peça começa com um retrato da artista Pippa Bacca e a apresentação da sua obra “Brides on Tour”. Durante a performance dela, vestida de noiva, ela foi violada e assassinada. Porquê começar com ela e até que ponto a arte é um risco para as mulheres, incluindo para si?

Eu fiquei obcecada pela história da Pippa Bacca. Eu começo com a ideia de que é preciso olhar para a sua vida, olhar para o seu trabalho e não só para a questão da morte. Então eu começo pensando qual é o trabalho dessa artista, quem foi ela, o quanto eu consigo me aproximar dela para começar a trazer esse inferno dessas histórias, o quanto a gente se parece, o quanto a gente completamente se difere nos nossos contextos, nas nossas histórias. A história da Pippa Bacca intriga-me e o que eu faço com o público é compartilhar esse espanto que essa história me causa porque é uma história muito complexa, com muitas camadas que eu compartilho na peça. Eu sinto que começar por essa história é de alguma maneira também começar me inserindo nesse risco também. É preciso fazer uma performance que me põe em risco para conseguir me aproximar dessa história, para falar sobre ela.

Esse risco acontece quando você toma a droga das violações que, no Brasil, se chama “Boa noite Cinderela”. É legal fazê-lo em França? E é um gesto em que voluntariamente você perde o controlo, entra em imersão e incorpora de facto um novo estado. O que é que este novo estado traz ao teatro?

O que eu posso dizer é que o Boa noite Cinderela que eu tomo neste trabalho é uma combinação de remédios que são vendidos e que a maioria das pessoas que a gente conhece tomam. Essa é a questão do Boa noite Cinderela ou do “rape drink”, não existe só uma droga que faz isso ser uma “rape drink”, mas uma combinação de coisas. Essas coisas são encontradas com muita facilidade. É uma combinação que é permitida, que as pessoas têm acesso e para mim é encarar isso como uma performance. Isso não é um gesto que leva a nenhum outro lugar a não ser algo do qual eu me preparei para fazer e que precisa estar dentro desse contexto para que essas coisas sejam discutidas. *

Na peça, ouvimo-la dizer que o público não deveria ser protegido e que o artista deveria sabotar as expectativas que criou com o seu trabalho. Porquê? E não há limites na forma como se representa? Ou tudo é representável, nomeadamente, a violência?

Essa frase é não é minha, é uma frase da Tania Bruguera quando ela faz uma acção durante a Bienal de Veneza, onde ela justamente explicita, através da performance dela, o que é esse espaço que não é possível ser seguro dentro da arte naquele momento. Para mim é um texto super importante e que faz tremendo sentido para mim. A questão da auto-sabotagem que ela propõe também tem a ver com rever qual é essa noção de artista, como a gente discute essas questões e acho que para mim essa escolha da performance é muito isso. Se discutir essa violência é uma das questões deste trabalho - porque são muitas - é aproximar-se dessa questão da violência sexual, eu sinto que há algo aqui que eu preciso colocar em risco da minha presença aqui como performer, como directora, como autora disso que se instabiliza. Eu acho que a questão da protecção vira um limite que é externo às obras. Eu entendo que a questão da representação, ou como a gente representa as coisas, cabe muito bem e lindamente em determinados trabalhos. Eu, por exemplo, falo muito sobre a mecânica do próprio teatro dentro da obra.

E critica o teatro dentro da obra, não?

Eu acho que sou uma grande enamorada do teatro. Eu tenho uma relação muito amorosa com o teatro. Na verdade, eu não sei se critico o teatro dentro da obra. Eu acho que estou trazendo questões sobre muitas coisas. A minha grande questão é esta: o teatro é um possível espaço que pode sustentar esse tipo de discussão. Acho que é mais isso para mim. Então, claro que eu vou trazer questões da representação, eu vou trazer questões da autoria, eu vou trazer questões desse borrar os limites do que é que é seguro, do que não é. Acho que tudo isso faz parte do contexto dessa peça. A grande questão é essa para mim. O próprio título da peça, essa questão da força, para mim o teatro é um campo de força.

Sem querer desvendar demasiado a peça, ela mostra a violência de uma forma muito crua. A recepção é tao intensa que cai a barreira entre a observação passiva e a compreensão activa, com o espectador a tornar-se parte dessa mesma violência. Qual é o efeito que espera produzir no espectador?

Vou ser muito honesta. Eu não sei o efeito que será produzido, mas sei que o meu interesse é propor um trabalho ao espectador. Uma vez que estamos ali expondo todas as questões. Qual é o trabalho do espectador? Ele não é um espectador passivo e ele não pode ser. Então eu vou chamar de angústia isso que você está trazendo. Acho que essa angústia que produz é o que acontece quando você se depara com duas horas e meia desse assunto, claro, mergulhado também em questões imagéticas. A poesia está ali o tempo todo presente também. Eu amo desenvolver as cenas de uma maneira poética. Para mim, tem uma coisa que é: qual é o trabalho que esse espectador tem. Eu acho, por exemplo, que tem um trabalho de literatura muito forte nessa peça e que demanda uma grande leitura. Há muito texto. Acho isso importante, acho que para mim é isso: qual é o trabalho do espectador? O espectador está sendo convidado a fazer qual trabalho dentro do teatro?

A sua peça revira tripas. É um manifesto? Um manifesto feminista? É uma forma de rebentar com os limites do próprio teatro? É uma performance política? O que é?

Eu diria que é teatro. É muito teatro porque eu acho que todas essas coisas que você levanta fazem parte do que constitui o teatro na minha visão. Para mim, ela não é um manifesto porque também tão pouco ela pretende defender qualquer coisa. Ela está sempre desestabilizando as defesas. Ela é um exercício de política, ela é um exercício de sobrevivência, ela é um exercício de escuta, ela é um exercício de escrita, ela é um exercício de suportar como é que a gente cria estruturas para que essas histórias sejam ouvidas. Ela é super teatro para mim.

O formato da peça é um género que também rebenta fronteiras. Estamos perante um teatro-palestra, teatro-conferência, teatro-performance? Já sei que me vai responder que é simplesmente teatro, mas é um teatro que não representa apenas a acção, ele é a própria acção. Ou seja, a representação torna-se ela própria a realidade… é um teatro revolucionário?

Eu sinto que é uma peça de teatro, que dentro dela ela tem uma performance, que o que a gente fica ali vivendo também são os resquícios desse rasgo do real dentro da peça. Porque há um rasgo ali que acontece. O efeito desse real dentro da peça é muito forte. O que acontece não é uma representação exactamente como a gente estava falando antes. E quais são os efeitos que essa não representação produz dentro desse lugar mais sensorial que o teatro também tem. E que é muito forte. Eu acho que se a gente pensar, são diferentes formas de a gente se aproximar do que a gente pode chamar de realidade. A segunda parte é uma aproximação da realidade, mas ela é uma aproximação sensorial. Ela é uma aproximação de uma outra natureza. Ela parte de um outro ponto dessa conversa. E a primeira parte é mais directa. Ela tem essa coisa de palestra que está sendo colocada como uma performance e, ao mesmo tempo, ela é muito directa. “Eu vou compartilhar aqui os estudos que eu fiz para isso, pá pá pá, essas são as pessoas que eu juntei, essa é a pesquisa da peça”… O pacto está muito claro. Ao mesmo tempo tem uma enorme teatralidade. As ferramentas do teatro estão ali também o tempo todo.

Mas dá a ideia que, a dada altura ou quando se passa para a segunda parte, o pacto é rompido porque a violência torna-se mais real. Fala de feminicídios nesta peça, fala de violações, temas que atravessam o seu trabalho. É preciso mostrar a violência de forma real para que as pessoas se apercebam da violência contra as mulheres?

Da minha parte, enquanto artista, eu acredito que é preciso criar linguagem para se falar, inventar linguagem para se falar da violência porque, para mim, o discurso, o depoimento no palco… Se eu fosse ao palco e dissesse que isto aconteceu comigo, tá tá tá… Eu preciso criar linguagem para isso porque para mim o nível do depoimento não é suficiente. Tudo isso para mim é uma tentativa de se construir uma linguagem e esse é o resultado dessa linguagem. Qual é essa linguagem? Como essa linguagem pode ser no teatro? Eu pergunto isso dentro da peça. O que é que o teatro tem que parecer? Para mim é a tentativa de linguagem, de pesquisa de linguagem. Por isso tem essas duas partes que são tão distintas, mas ao mesmo tempo tão borradas, que se encostam. Onde esse cenário também precisa trocar, as coisas vão-se transformando, vão-se abrindo, o delírio vai ficando mais profundo.

O público não poderá sentir, no final, que é obsceno aplaudir? Aplaudir no sentido de aplaudir a violência?

Não, não se está aplaudindo a violência, está-se aplaudindo uma peça de teatro. Estamos ali a fazer teatro. Ensaiamos essa peça, há todo um trabalho. É interessante como essa violência vem, mas ela está amparada e acho que ao longo de todo o espetáculo, principalmente na segunda parte, fica evidente que essas camadas também se misturam com o maravilhamento dessa capacidade de se criar imagens para aquilo que é brutal, essa capacidade de se inventar, de se re-significar as imagens. O teatro abre essa possibilidade. A gente inventa para re-significar aquilo, a barbárie, a dor. Eu estou dizendo isso porque eu realmente acredito… A minha peça não vai mudar o mundo, eu não tenho esse lugar assim, acho que até sou bem pessimista nesse ponto. Mas eu acho que o teatro pressupõe algum nível de transformação quando as coisas são colocadas ali. Quando essa fantasmagoria do teatro abre esse espaço para que certas coisas sejam revistas. Elas vão ser revistas através do filtro da poesia, da alegoria.

A Carolina Bianchi e a sua equipa estão no Festival de Avignon pela primeira vez. Já trabalhou com Tiago Rodrigues, o novo director. O que significa estar aqui e numa programação em que tantas peças são manifestos poéticos mas também políticos?

Primeiro de tudo, para mim, estar aqui - e é a primeira vez que um trabalho meu se estreia num país que não é o Brasil - para mim é muito emocionante poder estar aqui e estar com a minha companhia com quem eu tenho trabalhado há quase dez anos. Estrear um trabalho com todas estas pessoas nesta colaboração, estrear esse trabalho no primeiro ano da direcção do Tiago Rodrigues no festival, que é um artista que eu admiro, com quem compartilho uma visão política, artística, geral, é muito emocionante. Eu acredito muito em como este festival mobiliza a cidade, em como as coisas acontecem aqui, parece fazer muito sentido com a maneira como a gente também opera dentro do nosso grupo.

 

*[NDR] A produção da peça tem uma médica especialista em psiquiatria que acompanha Carolina Bianchi e que fez um prognóstico e uma dosagem para ela poder usar no espectáculo. Além disso, o festival colocou, como suporte, um médico para dar assistência em caso de necessidade.

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