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Bienal de Dança de Lyon quer abrir novas formas de encarar o mundo

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A Bienal de Dança de Lyon “é muito mais do que um conjunto de espectáculos”, é um acto social e político, de acordo com o seu novo director artístico. Tiago Guedes quer uma bienal “para toda a gente” e escolheu espectáculos com uma “militância social forte” para abrir novas formas de encarar o mundo. Fiel à vocação da bienal de mostrar “a diversidade do que é a dança contemporânea”, Tiago Guedes gostaria, também, de “suprimir a palavra elitismo” deste universo. 

Tiago Guedes, , Director Artístico da Bienal de Dança de Lyon. Les Substances, Lyon, 20 de Setembro de 2023.
Tiago Guedes, , Director Artístico da Bienal de Dança de Lyon. Les Substances, Lyon, 20 de Setembro de 2023. © Carina Branco/RFI
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A Bienal de Dança de Lyon, em França, é um dos encontros mais importantes da dança contemporânea a nível mundial e, pela primeira vez, é dirigida por um português, Tiago Guedes. O ex-director artístico do Teatro Municipal do Porto também assina a sua primeira temporada como director da Maison de la Danse e prepara a abertura dos futuros Ateliers de la Danse em 2026.

A 20ª edição da Bienal de Dança começou a 9 de Setembro e decorre até 30 de Setembro em Lyon (e até 21 de Outubro noutras 34 outras localidades da região). No cartaz, há 48 espectáculos, 21 são criações e estreias em França.  

RFI: Quais são as linhas de força a guiar esta sua primeira edição?

Tiago Guedes, Director Artístico da Bienal de Dança de Lyon: A Bienal de Lyon é um evento que existe desde os anos 80, a primeira edição foi em 1984, e a sua missão desde essa altura não mudou. Ela foi construída e foi imaginada para dar a ver ao público a grande diversidade do que é a dança, nomeadamente a dança contemporânea, e a sua grande diversidade a nível de estéticas, a nível também de formatos, a nível da sua apresentação, não só espectáculos que são para teatros mas espectáculos também que se apresentam noutros sítios nomeadamente no espaço público ou em fábricas desafectadas como é o caso deste ano. Portanto, a bienal de dança não é temática, mas pretende verdadeiramente mostrar esta grande diversidade do que é a dança contemporânea hoje.

Esta é uma programação que lhe chegou às mãos composta a 50% por Dominique Hervieu, a sua antecessora, ou seja, os outros 50% são seus.  O Tiago Guedes fala em programação como um “acto artístico, político e social”. Como é que isso se reflecte na programação que escolheu?

Nós trabalhamos muito nesta ideia de completamente suprimir algo que muitas vezes se conecta à dança que é a palavra elitismo, ou seja, que a dança é só para algumas pessoas, que é difícil de compreender. Então, o que nós fazemos aqui é verdadeiramente abrir portas. Abrir portas de compreensão e portas de entrada também para um público que não está tão habituado a projectos artísticos. Como é que nós fazemos isso? É organizar muitas coisas para além dos espectáculos que se passam nos teatros. Uma das forças da bienal é, de facto, as suas parcerias com todos os teatros de Lyon, da área metropolitana e muitos da região, mas este ano nós começámos a criar outros extractos na programação.

Para o espaço público, temos dois projectos: um projeto italiano, Alessandro Sciarroni, e um do português Marco da Silva Ferreira que são apresentados em diversas praças de Lyon, nomeadamente algumas onde há mercados, onde o público não está à espera de ver dança. Mas também tudo o que fazemos nas Usines Fagor.

A tal fábrica desafectada...

Sim, a fábrica desafectada, uma antiga fábrica de máquinas de lavar que é o hub criativo e convivial da bienal. Lá é o nosso ponto de encontro. É lá que o público sabe que depois dos espectáculos se pode reunir, encontrar outros públicos, encontrar os artistas. É nesse sítio também onde nós estamos a imaginar dois eventos que nós chamamos 'immersion hip-hop' ou 'immersion ballroom' que são 15 horas de mergulho nestas culturas que são culturas coreográficas, sociais, que vêm mais do underground.

E das contra-culturas?

Das contra-culturas, claro, e também cinco criações imaginadas “in situ”, ou seja, criações que poderiam ser feitas nos teatros, mas que nós desafiámos os artistas a fazê-las para aqueles grandes espaços, nomeadamente um dos grandes destaques desta bienal que é a primeira peça de Boris Charmatz para a companhia de Pina Bausch, o Tanztheater Wuppertal, que não acontece onde, se calhar, as pessoas esperariam que acontecesse, na ópera ou na Maison de La Danse, mas acontece numa enorme parte das Usine Fagor.

E o sentido político-social da programação?

Voltando à pergunta de por que é que é um acto artístico, social e político: é social no sentido em que nós defendemos que a Bienal é uma bienal popular, para toda a gente, então se é um acto social, ela tem que verdadeiramente chegar para além daquelas pessoas que já estão conectadas para a dança.

Político no sentido das escolhas, ou seja, quando programas, tu escolhes o que dás a ver ao público e isso é um acto da escolha e um acto político também do que é que a dança pode ser hoje na sociedade, ou seja, como é que nós podemos ver o mundo através de um lado mais sensível ou mais brutal, ver o mundo através dos corpos e da escrita dos artistas. Isso para mim é algo que me interessa muito e que eu acho que é muito necessário nos dias de hoje.

Vamos então ao abanar de consciências. Nas escolhas lusófonas, há Diana Niepce que é uma bailarina e coreógrafa tetraplégica, há Marco da Silva Ferreira que leva a dança para a rua, há Marlene Monteiro Freitas e a militante Lia Rodrigues…Porquê estas escolhas?

Bom, desde logo no sentido de analisar o que já existia, quando eu cheguei, e incluir projectos onde o foco principal não é só a escrita coreográfica, mas em que há também uma militância social forte, quer seja pelas suas temáticas, quer seja pela forma como os espectáculos se apresentam.  No caso do espectáculo da Diana Niepce, “Anda, Diana”, é claramente um espectáculo importante para mim.

 Revolucionário?

Sim e de equilíbrio também do sítio e do espaço que se dá aos artistas para estarem presentes nestes grandes eventos, não de uma forma paternalista. Este espectáculo da Diana está presente artisticamente, é um trabalho que eu defendo.

O espectáculo do Marco da Silva Ferreira é um espectáculo com bailarinos muitos jovens, em que põe também os jovens no centro do seu trabalho e é algo muito importante para nós na bienal. Não é apresentado nos teatros, é apresentado onde for e tem um lado comunicativo muito próximo com todo o público, mas sem mexer o nível de qualidade.

Esta bienal não é só para se ver, é também para o público dançar. Para isso criou o Club Bingo. O que é?

O Club Bingo é exactamente isso. Nós defendemos na bienal que o público deve ser instigado não só a ver espectáculos, mas a praticá-los também. Ou seja, há vários espectáculos que incluem habitantes de Lyon. A bienal tem, desde os anos 90, um grande projecto no espaço público que é o ‘Défilé’ que é um projecto de 12 coreógrafos que trabalham com 3.500 pessoas, mas eu gosto muito desta ideia de que a dança está em todo o lado.

Se nós começarmos a olhar o que está à nossa volta, nós vemos dança em todo o lado, ainda para mais se nos focarmos nesta definição da dança, que eu acho muito bonita pela sua simplicidade, de que a dança é um corpo em movimento num espaço. Pode ser tudo. Pode ser todos os corpos, desde logo, mas se formos a um lado um pouco mais da experiência pessoal, muita gente dança em casa, na discoteca, nas suas aulas de ginásio, se olharmos na rua vemos casais a dançar.

Então, esta ideia de que a dança é algo muito incorporado nas pessoas e na nossa sociedade agrada-nos muito e foi por isso que nós dissemos bom então qual é que é um sítio onde todas as pessoas dançam? Uma discoteca, um club, que tem uma programação curada pela Rose-Amélie da Cunha que trabalha comigo na programação de tudo o que é a parte social da bienal. Todas as sextas e sábados há Club Bingo. Bingo é uma coisa lúdica, algo que toda a gente faz, que toda a gente partilha e por acaso havia um grande tag nas Usines Fagor que dizia ‘bingo’ e nós dissemos: ‘Club Bingo é o nosso ponto de encontro da bienal’.

Criou um fórum de curadores internacionais, ou seja, convidou cinco comissários de Moçambique, Brasil, Taiwan, Austrália, Estados Unidos que vão trazer artistas de diferentes continentes para a próxima edição. Qual o objectivo?

Eu defendo que um evento desta escala deve fazer uma radiografia do que é a dança hoje no mundo e não só na Europa. Quando observamos a nossa programação, 80% dos espectáculos, 85% quase, são projectos europeus. Para mim, é muito importante dar a ver o que se faz em todo o mundo de uma forma global com o objectivo de 50% de artistas europeus e 50% de artistas não europeus.

Para isso, nós imaginámos um contexto de programação que se afasta da noção extractivista da programação. O que é que eu quero dizer com isto? Ir a um sítio longínquo, tipo a Austrália, estar lá três ou quatro dias, trazer um espectáculo, apresentar aqui em Lyon. Não. Eu estou muito mais interessado em estabelecer relações muito mais profundas com os tecidos culturais desses sítios e, para isso, é preciso tempo e conhecimento do que é que se passa nesses sítios. Então, convidámos cinco curadores não europeus de cinco continentes, África, América do Sul, América do Norte, Austrália e Ásia. Em conjunto estamos a pensar exactamente o que é que vai ser essa programação internacional para 2025.

Além do fórum de curadores internacionais, o Tiago Guedes também promoveu um comité artístico da juventude “À toi” que vai escolher um espectáculo para 2025. Qual é o objectivo? Que todos participem? Isso não é uma pequena revolução na forma tradicional de mandar e programar…

Claramente, há aqui uma vontade e uma crença que os processos de decisão devem ser muito mais horizontais do que são hoje. No caso do “À toi” é um projecto muito para além da questão de programarem no final um espectáculo. É um projecto defendido e organizado pela Maison de la Danse e pela Bienal. É um comité artístico de juventude, são 18 jovens que têm hoje 15 anos e que vão-nos acompanhar durante dois anos.

Ou seja, eles começam uma descoberta do mundo da dança nesta bienal de 2023, vendo espectáculos e tendo um percurso crítico sobre espectáculos, de escrita crítica, e depois vão estar connosco durante duas temporadas na Maison de la Danse.  Aí é um encontro por mês, com ateliers práticos, projectos participativos, ateliers sobre o que é que são as profissões da cultura, o que é que são as profissões que existem no teatro, o que é trabalhar na produção, na técnica na comunicação, ou seja, para terem noção do que se passa nos teatros muito para além dos bailarinos que vêm dançar no palco, dos actores que vêm representar.

O último atelier é um atelier comigo e com a equipa de programação da Maison de La Danse, em que, em conjunto, eles vão perceber o que é isto de programar, como é que se escolhe, sobre que temáticas, porque é que escolhemos este e não este, se gostamos de cinco mas só podemos escolher um... Então vai haver um espectáculo onde eles vão ser claramente os embaixadores e vão escolher este espectáculo que vamos apresentar na bienal 2025. Em 2025, começa a segunda promoção, o segundo grupo que ligará a bienal de 2025 à bienal de 2027. É um projecto que se renova com novos jovens a cada dois anos.

Como em Avignon, é a primeira vez que um português e que um artista estrangeiro dirige o festival. Para si, o facto de ser estrangeiro tem algum peso simbólico para desempoeirar mentalidades em França?

Não ousaria dizer isso. No entanto, posso dizer que sou português, não sou francês, as minhas referências são outras, as minhas conexões são outras. Desde logo, Portugal é um país periférico na Europa, há outras formas de fazer, outras formas de inventar. Tenho um percurso de artista, de produtor, de fazer muitas coisas antes de chegar à direcção do Teatro Municipal do Porto, nomeadamente uma relação forte com África, com o Brasil, portanto, outras geografias também.

O que eu acho que nós podemos trazer - falando por mim, não falando pelo Tiago [Rodrigues], embora partilhemos muitas coisas – é um pouco essa abertura, alguma desinstitucionalização das instituições, algo muito importante para mim, a desverticalização das instituições também. Ou seja, a tomada de decisão e, acima de tudo, o dia-a-dia - não só a tomada de decisão porque as pessoas não têm todas de decidir, mas podem todas contribuir - mas a forma como organizamos o nosso dia-a-dia ser algo muito mais partilhado com as equipas. É uma forma também de todas as equipas levarem todas o projecto que elas sentem que é delas também, não só de um novo director ou de alguém que chega.

Isso sim, são coisas novas, são coisas que estamos a tentar fazer, mas que eu acredito verdadeiramente que podemos fazer melhor de uma forma muito mais partilhada. É isso que estamos a tentar fazer desde esta bienal.

Como é que podemos resumir a sua ambição enquanto director artístico da bienal de dança de Lyon? Até onde é que esta bienal pode ser o tal fórum do pensamento pelo corpo e o movimento e a ferramenta de desinstitucionalização e "desierarquizaçao" das instituições?

Acho que se tem que honrar e agradecer todo o trabalho que foi feito na Bienal desde os anos 80. Eu sou só o terceiro director, o fundador Guy Darmet esteve 30 anos a desenvolver este projecto numa escala mundial e agora é um evento que o público espera que aconteça, que acorre aos bilhetes com grande velocidade, há programadores de todo o mundo que vêm a Lyon para ver a programação que nós fazemos.

Então, isso dá-nos também uma responsabilidade que é o papel da bienal hoje em dia, tanto para o público, mas também para os artistas. Eu vejo sempre os projectos culturais com o duplo objectivo: é para o público, mas também para os artistas.  Ou seja, os artistas têm que ter uma consequência, por isso é que nós convidamos todos estes programadores internacionais que, depois, podem montar as suas 'tournées'.

Mas, para mim, uma bienal tem que ser muito mais do que um conjunto de espectáculos. Um conjunto de espectáculos nós podemos agregá-lo numa agenda da programação, espectáculos que acontecem em todos os teatros, mas pese embora os espectáculos continuem a ser o centro, deve ir muito para além disso. Deve tocar na formação, deve tocar na reflexão, deve tocar na parte social, em muitas outras vertentes que eu defendo que devem acompanhar o lado do espectáculo. A nossa primeira bienal de base será a de 2025, esta já dá várias pistas do que é que ela pode ser e já estamos a trabalhar para a edição de 2025.

Ou seja, há mais dança para além da dança?

Há muito mais dança para além da dança, muito mais lastro para além dos espectáculos, muito mais discussão para além dos temas que nós vemos em cima do palco. Interessa-me menos a quantidade de coisas que fazemos, mas as coisas que fazemos que tenham muito mais lastro à volta para além da sua apresentação.

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