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Lyon dança “Schubert electro” com Marco da Silva Ferreira

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O coreógrafo e bailarino português Marco da Silva Ferreira tira a dança das salas e leva-a para as ruas durante a Bienal de Dança de Lyon, que decorre até 30 de Setembro. O espectáculo “Fantasie minor” parte de uma peça de Franz Schubert e deriva para uma batida electrónica, numa história dançada que cruza estilos e códigos para quebrar fronteiras e criar uma identidade mais colectiva.

Marco da Silva Ferreira, Coreógrafo
Marco da Silva Ferreira, Coreógrafo © Carina Branco/RFI
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RFI: De que fala ‘Fantasie minor’?

Marco da Silva Ferreira, Coreógrafo: ‘Fantasie minor’ foi um convite do CCN [Centre Chorégraphique National] de Caen para eu trabalhar com estes dois jovens bailarinos porque tínhamos uma história, um caminho em dança muito comum, próximo das danças urbanas e das danças de rua. Ao conhecê-los um bocadinho melhor, percebi que eles eram como irmãos e tinham uma relação fraternal muito grande. A dada altura, pensei que queria falar sobre amor, não um amor romântico, mas um amor de uma história de vida, de um caminho que se faz ao longo da vida juntos e que acompanha uma transformação.

Ao cruzar-me com esta partitura de Schubert, que é tocada a quatro mãos, eu pensei que queria este espaço em que duas pessoas têm de coabitar e têm de negociar para tentarem ser uma e que esta relação dos pianistas a tocarem no mesmo piano vai casar muito bem com um quadrado suspenso onde estes dois bailarinos dançam como se fossem um.

Então, surgiu essa ideia de trabalhar sobre uma relação que já era a relação deles, que é uma relação que os vai acompanhar seguramente, sobre este espaço de relação íntima entre os dois e também inevitavelmente falar numa escala temporal: de um passado que pode remeter para alguma nostalgia e melancolia dos tempos em que éramos jovens irmãos, mas também que pode ser uma reflexão sobre o futuro, sobre dois irmãos, dois amigos, que reflectem sobre a vida já quando forem muito velhos.

Inspira-se numa partitura clássica e entra, depois, numa espiral electrónica, mas nunca abandonando o clássico melódico. O que é que o levou a fazer estas pontes?

Estes bailarinos são bailarinos contemporâneos, vivem hoje. Para mim, é importante que o léxico que eles estavam a fazer de corpo de dança, de linguagem fosse essa. Daí querer cruzar esse movimento – que, às vezes, é muito mais marcado, o stacatto, com mais impacto, o movimento se calhar às vezes mais grotesco, com mais groove - com um lugar mais sublime ou que pudesse reflectir uma leveza ou uma suspensão.

Ao trabalhar com umas botas que são pesadas, que obrigam o corpo a evidenciar esse peso e, ao mesmo tempo, essas botas são o elemento onde eles se colocam em pontas e em desequilíbrio e que dependem um do outro a partir desse desequilíbrio, para mim foi a relação perfeita entre uma brutalidade que, com outros olhos, se pode aparentar com vulnerabilidade e dependência.

O espectáculo inspira-se numa peça para piano a quatro mãos e ecoa com os quatro pés dos bailarinos. As botas dos bailarinos são pesadas, batem com força no chão, mas também são usadas para fazer os tais 'piqués' como no ballet … A dança para si é este espaço de liberdade que é preciso descodificar e tornar acessível para todos?

Eu gosto particularmente de trabalhar com os limites e trabalhar com as fronteiras e trabalhar com os contornos. Para mim, é muito interessante pensar a dança assim, mais do que pensar na representação ou na figuração em palco de uma dança que existe no exterior.

Para mim, é muito mais interessante pensar qual é o contra-molde, qual é aquela coisa que está à volta desta dança que aparece, por exemplo, nas ruas e usar as ferramentas que forem necessárias para testar esses limites, para definir esses contornos. Às vezes, é para esbatê-los, outras vezes é para evidenciá-los, para os questionar. A dança é esse lugar em que nós nos colocamos num ponto de encontro, caímos em lugares comuns para os questionarmos, desejamos o encontro com qualquer coisa que há na periferia.

É por isso que este espectáculo é feito em espaços urbanos? Esta quarta-feira, foi no pátio de uma universidade, mas também o faz noutros espaços da cidade e o espectáculo é gratuito. Há uma certa ambição política de a dança ser para todos?

Sim, o convite partiu de um projecto que se chama Todo o Terreno. A proposta inicial era que poderia ser um espectáculo interior, poderia ser exterior, poderia ser jardim ou cidade. Interessou-me muito sair do teatro e do espaço do palco directamente, da caixa escura, porque a dança precisa de ocupar outros sítios e outros corpos precisam de ocupar a dança.

Pegar em Schubert, mixá-lo com DJ e torná-lo electrónico pode ser muito mal visto por puristas da música mas, para mim, interessa-me também ir a esses lugares, ir a lugares do que está estabelecido, do que é erudito. Não é fazer chegar aquilo que é dito erudito à rua ou a outros sítios. É que esses sítios ocupem também os lugares que são tidos como cristalizados.

O Marco da Silva Ferreira começou por se formar em danças de origem afro-americana e, nos últimos anos, centrou-se muito em elementos do ‘clubbing’. O seu percurso ecoa com a ambição da dança contemporânea que vai beber às contra-culturas e a zonas “periféricas”. Porque é que vai buscar a dança a estes espaços colectivos e como é que isso faz parte da sua identidade enquanto bailarino e coreógrafo?

Eu comecei a dançar já relativamente tarde, não fiz um percurso académico. Quando a dança surgiu na minha vida, eu tinha cerca de 16, 17 anos, eu estava no pico da minha adolescência, a relacionar-me altamente com a cultura pop americana, o MTV estava a entrar na televisão e claro que toda essa cultura é uma cultura muito afro-descendente.

Foi através do prazer da dança e do prazer de mexer dentro deste contexto, desta estética, que eu me descobri como bailarino e que as minhas referências acabaram por se ir aprofundando. É claro que à medida que nós vamos crescendo, o que é mais imediato acaba por diluir um bocadinho e eu fiz outras formações e entrei noutros estilos e noutros pensamentos, mas o que me motivou a dançar foram estas danças pop americanas.

Agora, como coreógrafo, eu sou mais crítico sobre de que forma é que essas informações chegaram até mim, como é que chegaram, porque é que chegaram, questionar um pouco como é que um adolescente cria identidade pessoal tão desconectada - como aconteceu no meu caso - até de uma identidade portuguesa. Se calhar, conheço melhor códigos que são os americanos do que propriamente os meus regionais.

Todas estas questões sobre identidade pessoal e identidade colectiva, como é que se constrói cultura, como é que nós recebemos o que nos é herdado, como é que o preservamos ou o transformamos, todas essas questões começaram a ser muito importantes para mim, mas vêm de um processo de auto-reflexão crítica sobre a minha própria relação com a dança.

Eu acho que o meu trabalho como coreógrafo centra-se aí: numa tensão entre o meu percurso e a geopolítica, sobre a dança que eu faço e o contexto onde essa dança surgiu, sobre a informação, sobre conhecimento, sobre identidade colectiva, sobre comunidade. Se calhar porque, em parte, eu senti falta de pertencer a uma comunidade e perceber o que era uma identidade colectiva real no dia-a-dia. Então, tive de ir beber a outros sítios.

Nessa "geopolítica da dança", o Marco da Silva Ferreira é agora artista residente em Lyon. Como é que vai acontecer este processo e o que é que isto lhe traz?

Eu sou artista associado em Lyon de 2023 a 2026. São três anos onde eu vou poder ter o apoio da Maison de La Dance e da Bienal para propor projectos, para fazer pesquisa, para entrar em contacto com públicos amadores, públicos profissionais, para apresentar espectáculos em palco e fora de palco, para leccionar workshops. Isto tem sido uma coisa que tem acontecido já no Porto desde 2018, 2019, depois em Caen através do CCN e que se concluiu com a criação deste projecto ‘Fantasie Minor’.

Agora, ter esta possibilidade de uma plataforma que apoia o trabalho, que acredita, acho que é um privilégio gigante como artista e estou muito contente com poder executá-lo, por poder perceber também que existe uma missão nesta estrutura em questionar onde é que estamos, quem são os artistas, em reunir os artistas, em encontrar públicos.

Fazer parte disso e ter o convite para fazer parte disso, o prazer e o privilégio de ter esse convite é óptimo. Vou poder criar objectos que gosto, vou poder encontrar-me com outros artistas franceses e não só, portugueses também. Também é uma validação, uma legitimação que, às vezes, até tenho um bocadinho de receio se não é demasiado confortável!

Em Outubro, vai apresentar ‘Carcaça’ na Maison de la Danse de Lyon. Quer falar-nos desta peça?

Eu apresento ‘Carcaça’ na abertura da temporada da Maison de la Danse de Lyon. É uma peça que fala, mais uma vez, sobre construção de identidade colectiva a partir da história portuguesa, a partir do lugar de cristalização e de clausura que eventualmente o folclore português atravessou na altura da ditadura salazarista.

Fala-se exactamente sobre esta fetichização do controlo dos corpos, de controlar as culturas e quando se tenta cristalizar e dizer que ‘somos só isto e seremos sempre isto’, então há qualquer coisa que morre e quando nós deixamos de nos questionar e de ter a capacidade de olhar com algum sentido crítico para aquilo que somos como indivíduo mas, sobretudo, como colectivo, então há qualquer coisa que se perde de identidade.

O espectáculo fala sobre estes limites, sobre estas fronteiras, sobre muros e definições que se levantam e que necessitam de ser sempre questionadas e, às vezes, deitadas abaixo para reerguer.

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