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Artes

Diana Niepce reinventa os corpos e a dança na Bienal de Lyon

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“Anda, Diana” é um espectáculo autobiográfico da bailarina, coreógrafa e escritora portuguesa Diana Niepce. A peça conta o seu percurso de reconstrução e de recusa de cânones performativos desde que um acidente a deixou tetraplégica e a fez reinventar as normas ligadas ao corpo e à dança. “Anda, Diana” é apresentado na Bienal de Dança de Lyon e é também um manifesto político contra “todas as práticas de exclusão, de marginalização e de opressão”.

Coreógrafa e bailarina Diana Niepce na Bienal de Dança de Lyon. 20 de Outubro de 2023.
Coreógrafa e bailarina Diana Niepce na Bienal de Dança de Lyon. 20 de Outubro de 2023. © Carina Branco/RFI
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RFI: “Anda, Diana” é um título duro, tendo em conta a sua história. Quer explicar-nos o que significa e do que fala a peça?

Diana Niepce, Bailarina e coreógrafa: ‘Anda, Diana’ vem também de um livro autobiográfico que é um relato muito sarcástico e cruel. Eu tenho um lugar muito irónico dentro das minhas obras artísticas também porque trabalho muito um lugar que está muito próximo das artes visuais, com esta questão da escrita e da literatura e da forma como a literatura se compõe em termos de trabalho de intimidade. Eu trabalho muito nesse lugar, as minhas obras de dança, performance.

É um espectáculo que, por si só, o tema é bastante violento e, como é óbvio, é uma responsabilidade muito grande a partir do momento que um artista se diz que vai trabalhar uma peça autobiográfica e tem a sua complexidade: que forma é que nós transmitimos, o que é que é um lugar. Neste caso, retrata um lugar bastante violento e perverso e, ao mesmo tempo, contesta normas de opressão, de todo um lugar invisibilizado pela sociedade que é formatada de uma forma que não reflectimos sobre estas questões.

Então, foi um processo muito complexo que trazia muitas dinâmicas, ao mesmo tempo, de eu com o mundo, como é que eu vou trazer este lugar que tem já um livro tão tenso e denso e intenso e descritivo e de relatos intermináveis para uma peça que é uma performance.

Eu sei muito bem sempre aquilo que não quero, agora aquilo que eu quero, durante um processo criativo, não é muito claro para mim. Então, eu vou trabalhando um bocadinho neste lugar de experimentação e uma das coisas que eu queria fazer era poder proporcionar uma experiência.

Falou nas artes visuais. A peça é muito visual também e muito sonora. É quase “caravagesca” no trabalho de luz, depois há muitos quadros na vertical, alguns na horizontal, evocações de Crucificações e de Pietàs. Porquê as escolhas de reduzir a cenografia em palco, por exemplo?

 As imagens vão-se construindo em função das próprias construções sociais em torno das representações de mulher, homem. O meu trabalho é muito híbrido também. Então, tem sempre este lugar de metamorfoses dos corpos, mas não só. Este trabalho também é um trabalho em que eu alio muitas técnicas circenses porque eu também era acrobata e eu trago estas técnicas de circo, de uma forma não circense, não tradicional, mas que traz este lugar mais contemplativo de objectificação dos corpos e de permitir essa observação para com o público do corpo como ele é, com os seus esplendores e defeitos e falhas.

Há também um lugar de construção da peça que tem um lugar denso de tensão em que o corpo é reconstruído através do corpo de outros. Ou seja, aqui a história é de um corpo hirto que retrata o lugar da minha tetraplegia e de que forma é que a gravidade tem um impacto que nos faz repensar a forma como o corpo trabalha. É através destes dois corpos, no caso o Joãozinho da Costa e o Bartosz Ostrowski, que vou reconstruindo o meu próprio corpo e através de imagens disseminadas que estão na nossa próprio ‘background’, mas muitas das imagens são o público que as vai buscar, elas variam entre muitas outras coisas. A maioria das vezes, não é só sobre a imagem, é sobre o estado porque existe um lugar muito importante da presença que cria variações nas imagens.

E a própria música é muito densa e reflecte essa tensão.

É o Gonçalo Alegria, que é o meu músico, que faz isso em tempo real e é sempre diferente, mas traz também aqui um lugar, por exemplo, em que uma das nossas primeiras inspirações – ou minha - era a violência que é entrar numa ressonância magnética e ficar lá meia hora, sabendo aquilo que nos está a acontecer com o corpo totalmente paralisado. Vem um bocadinho desta viagem que é passar por uma experiência dessas e é trazer essa experiência para um público que não está a percepcionar o que é que está a viver, mas que vai devagar construindo esta experiência somática.

Isto também é muito complexo porque estamos a falar, muitas vezes, de coisas que não são palpáveis, que são de trazer densidade do que está a acontecer, da tensão, do tempo que demora a reconstruir ou a construir alguma coisa, que é algo que não é visível. Não é como no teatro, não estamos a dizer e a criar tensão através das palavras. É através do estado do corpo em que muitos dos detalhes são simplesmente a mão que vira ou que treme.

A peça é um campo de batalha entre a sua mente e o seu corpo. Nota-se que vive ali no risco e o público sente esse risco e quase que tem vontade de intervir. É o risco que também a move?

É um bocado vago. Já me perguntaram, há uns tempos, que era incrível o facto de eu ter tido o acidente e continuar a pôr o meu corpo em constante risco. Mas o meu trabalho foi sempre sobre isso, eu não sei trabalhar de outra forma. Eu trabalho sobre o risco, eu trabalho sobre a experimentação e eu trabalho sobre encontrar este lugar que não é um lugar de conforto e isto é um lugar de discussão, isto é um lugar de conflito interno comigo própria muitas vezes.

E é um lugar muito complexo porque quando estamos a tomar decisões na criação, nem sempre conseguimos explicar o porquê ou dar a razão para estar a ir para o caminho do conflito, mas o meu trabalho é sobre isso, o que faz com que estejamos sempre a trabalhar sobre um lugar muito visceral e intenso e frágil. No entanto, eu tenho um deslumbramento sobre os limites físicos. Eu tenho um deslumbramento sobre a física do corpo, como encontrar o equilíbrio, como encontrar o desequilíbrio, o que é que faz encontrar aquele momento e suportá-lo em resistência.

Essa resistência acaba por ser quase uma forma de violência também. Como é que se reconstrói o corpo, a mente, depois de tanta violência? É criando?

Esse diálogo que eu falo entre a mente e o corpo é porque nós estamos sempre um bocado no conflito e eu vivi muito tempo num conflito da Diana normativa com a Diana não normativa, da Diana bailarina e da Diana que ficou tetraplégica e continua a ser bailarina e está a contestar os cânones da dança e o vocabulário da dança e a forma como observamos o corpo e a hierarquia do corpo performativo.

Eu vivo dentro desse próprio conflito e da negociação entre o corpo e a mente. Com todo o ‘know-how’ que temos e que eu tenho, com toda a educação que tive e formatação em torno da dança, em que efectivamente o que aconteceu foi o meu corpo viu-se obrigado a reaprender a reorganizar-se e a reconstruir-se e a trabalhar de uma outra forma. Isto é uma forma que é muito complexa de se explicar para todo um sector que está construído em função de um padrão que o meu corpo não cumpre.

Do seu acidente reinventou-se, reinventou a relação que tinha com o seu corpo. De certa forma, criou um corpo revolucionário e sacudiu a própria dança. Está a sacudi-la, a dança?

É assim, isto não é bem um objectivo nas minhas coisas. Mas refutar os cânones sim, procurar o porque é que estamos sempre a fazer coisas que nos dizem que é o que temos que fazer e que estão de acordo com normas que nós nem contestamos. Não, não temos que fazer. O corpo não tem que ser só isto.

Eu acho que a dança observa o corpo de uma forma muito limitada e há uma frase que eu uso muito desde a minha tese de mestrado e que é o segredo do movimento. Onde é que está o segredo do movimento? De onde vem, para onde vai, o que é que estamos efectivamente aqui a fazer? Interessa-me trabalhar políticas, interessa-me que através das minhas peças estejam a repensar o seu lugar no mundo. Eu não estou a fazer uma coisa para entreter. Eu poderia estar e é tudo válido e há espaço para tudo, mas não é sobre isso o meu trabalho.

O meu trabalho, sim, é sobre a violência das normas que nos oprimem, que estão constantemente a existir e que nós observamos a existência delas, percepcionamos e não fazemos nada. Não consigo fugir desse lugar. É assim porquê? Porque eu acho que chegámos a um lugar que durante muito tempo não se questionou o porquê das práticas e há práticas que são de exclusão constante e de marginalização e de opressão.

De certa forma isto é muito complexo porque eu trabalho isto através de um jogo e os jogos têm sempre dinâmicas de dominação, de submissão e estes jogos em tempo real são super complexos e, principalmente, nos tempos da criação, não estamos a brincar, tornam-se reais. E é violento estar a falar de violência e é violento estar constantemente a falar sobre isto. Mas também é um lugar que traz a mudança ou a revolução.

E cria novos espaços de integração e de pensamento também…

E de voz e de fala. É um bocadinho por aí.

Porque é raro vermos pessoas tetraplégicas num espectáculo.

Em França, eu acredito que, se calhar, se vejam mais pessoas com deficiência no geral do que em Portugal. Se bem que em Portugal o mundo cultural já teve bastantes mudanças nesse sentido. Mas podemos observar o público: não havia uma única pessoa com deficiência a observar o espectáculo. As pessoas com deficiência não estão em lugares de poder e muitas das vezes não estão em lugares de voz. Mas estão em todo o lado e as pessoas continuam a achar que não fazem parte ou que têm o direito de as excluir ou de dizer "não venham". É por isso que é importante a voz destas pessoas ou essa presença no palco. Por isso é que eu também tenho muito trabalho de formação não só de público, mas de artistas com deficiência.

Apesar do que atravessou, não se posiciona no lugar de vítima e obriga-nos a repensar o nosso posicionamento imposto pelas normas culturais. Ao criar o risco de ser um exemplo ou de ser uma história inspiracional não poderá culpabilizar aqueles que têm uma deficiência, mas que não conseguem ter a sua força?

É muito complexo. A sociedade está muito bem formatada para fazer com que as pessoas com deficiência se sintam menos, se sintam inúteis, se sintam fartas. Está muito bem formatada. Há um lugar de condescendência, de paternalismo muito violento e que não é visível e isto complexifica o lugar onde deixam as pessoas com deficiência.

Eu compreendo que observem as minhas peças ou as minhas obras e as vejam e me coloquem num lugar de inspiração porque, de facto, as peças têm um nível de dificuldade de execução, um nível de complexidade que quem vir um ensaio consegue ver o nível de dificuldade que aquilo é para qualquer artista, seja ele com ou sem deficiência.

Como eu sou uma pessoa com deficiência, como eu sou uma pessoa tetraplégica que era uma bailarina e que, por acaso, tenho uma história bonita que ajuda a fomentar todo um discurso inspiracional em torno da dança e a bailarina que voltou a andar e a peça ‘Anda, Diana’… enfim, o que quer que seja até porque, muitas das vezes, as pessoas não conseguem perceber se eu tenho uma deficiência.

Se eu não enunciar que sou uma bailarina tetraplégica, como no ‘Anda, Diana’, as pessoas não conseguem perceber muito bem o que é que é. Eu não uso cadeiras, eu uso o corpo, mas eu conheço muito bem o corpo e sei muito bem trabalhar corpos e isto é complexo para uma pessoa do público que não tem a mesma percepção do que é que é trabalhar o corpo que eu e depois consciencializar-se que, no fim, eu chego lá de cadeira de rodas e isto por si só é de muita violência.

Mas eu acho que é um caminho que está a surgir e hoje em dia o ‘Disability Arts’está cada vez mais presente e há mais artistas com deficiência, o Dan Daw, a Chiara Bersani,Claire Cunningham. Durante muitos anos houve outros que, se calhar, foram numa geração que tiveram mais dificuldade e em que a dança estava mais ligada a uma dança moderna, a um lugar mais estético e de forma. No entanto, também há muitos outros que trouxeram estes lugares de violência, como Bob Flanagan, que eram artistas muito próximos da ‘Live Art’.

Então, eu identifico-me muito mais com este lugar porque na verdade aquilo que me interessa falar é política e não é só fazer um ballet - se bem que há formas do ballet nas minhas peças, às vezes, em que a técnica pode ser usada ou em termos de coreografia - mas interessa-me ir a um lugar mais visceral e interior.

Foi convidada no âmbito da chamada Plataforma, uma selecção de coreógrafas mulheres emergentes. Como vê este gesto da parte do festival e como é que em 2023 ainda é urgente tirar as artistas mulheres da invisibilidade?

Se observarmos pelas estatísticas de pessoas convidadas dentro de festivais internacionais e grandes plataformas ao longo das últimas décadas, podemos perceber a sua importância porque ainda que o homem branco se sinta, de certa forma, posto em causa hoje em dia, foram durante muito tempo os únicos escolhidos. É importante dar voz a outros e à mulher que foi durante tanto tempo... que tem que estar constantemente a defender-se. Ainda estamos num lugar que gostava que não estivéssemos. Estamos um bocadinho mais à frente, mas eu acho que ainda estamos num lugar em que temos que continuar a defender os nossos direitos.

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