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Boicote diplomático dos EUA aos JO de Pequim:"há uma intenção de bipolarização com a China"

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Os Estados Unidos oficializaram a sua decisão de boicotar diplomaticamente os Jogos Olímpicos de inverno de Pequim que decorrem entre o dia 4 e 20 de Fevereiro do ano que vem. Esta decisão contra a qual a China tinha já ontem tecido advertências, prometendo uma "resposta firme", estava a ser ponderada há muito pela administração Biden que refere pretender deste modo protestar contra as violações massivas dos Direitos Humanos cometidos contra a minoria muçulmana no Xinjiang, no noroeste da China.

O boicote diplomático dos Estados Unidos não abrange os atletas americanos que poderão participar livremente nos Jogos Olímpicos de Pequim em Fevereiro de 2022.
O boicote diplomático dos Estados Unidos não abrange os atletas americanos que poderão participar livremente nos Jogos Olímpicos de Pequim em Fevereiro de 2022. © AFP
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De acordo com várias organizações de defesa dos Direitos do Homem, Pequim mantém em detenção pelo menos um milhão de pessoas pertencentes à comunidade Uigur em "campos de reeducação" no alegado intuito de "combater o terrorismo", uma situação à qual a Casa Branca se referiu ontem como sendo um "genocídio".

Esta decisão de Washington que acontece igualmente num contexto de crescente tensão com a China sobre outras matérias, como o comércio, ou ainda a soberania de Taiwan, limita-se contudo ao aspecto político.

Com efeito, o boicote não abrange os atletas americanos que poderão participar livremente nos Jogos Olímpicos, o que acabou por ser acolhido pelo Comité Olímpico Internacional com uma forma de alívio.

Ainda continuam presentes nas memórias os Jogos Olímpicos de 1980 em Moscovo, em plena Guerra Fria, totalmente boicotados pelos Estados Unidos que quatro anos depois, viram os Jogos de Los Angeles serem ignorados pelos atletas e diplomatas russos.

Em entrevista à RFI, Álvaro Vasconcelos, antigo director do Instituto de Estudos de Segurança da União​ Europeia, analisou a decisão americana e as suas possíveis implicações, nomeadamente em termos de crescente bipolarização com a China.

RFI: O que pensa da decisão de os Estados Unidos boicotarem diplomaticamente os Jogos Olímpicos de Pequim?

Álvaro Vasconcelos: Eu penso que um boicote diplomático aos Jogos Olímpicos de Pequim como este que os americanos estão a fazer, por um lado corresponde a uma pressão da opinião pública, das organizações de defesa dos Direitos Humanos que exigem que as violações dos Direitos Humanos na China nomeadamente em relação aos Uigures mas também em relação a atletas e jornalistas não passem despercebidas, não passem sem uma resposta americana ou da comunidade internacional, pelo menos de vários países que têm os Direitos Humanos como um aspecto importante da sua agenda. Isso, penso que é positivo haver uma mensagem deste tipo. Mas por outro lado, acho que esta mensagem é um pouco ensombrada se nos lembrarmos que isto está nas vésperas da cimeira da democracia e que, na cimeira das democracias, por um lado há a vontade de afirmação dos problemas que as democracias enfrentam e a necessidade de os combater mas, por outro lado, há uma intenção geoestratégica de uma bipolarização com a China que eu acho que é negativa.

RFI: Oficialmente, os Estados Unidos dizem que pretendem protestar contra o tratamento reservado aos Uigures, mas tem-se a sensação que não se trata apenas da questão dos Uigures, uma vez que há também, por exemplo, a questão de Taiwan que tem vindo a ganhar dimensão nestes últimos tempos.

Álvaro Vasconcelos: Sem dúvida que a questão dos Uigures pesa fortemente, não porque o governo americano não tenha relações com ditaduras e não participe em eventos organizados por ditaduras que não respeitam os Direitos Humanos mas que estão no campo dos seus aliados estratégicos. O que eu digo é que não me parece que Taiwan seja a questão central. Acho que a questão central do ponto de vista geoestratégico para os Estados Unidos é o facto de a China se afirmar como uma potência mundial que contesta a predominância económica e a predominância tecnológica americana. Por isso, Trump tinha a política de 'Make America Great Again'. Isso era uma política antichinesa em primeiro lugar e hoje Biden não alterou essa política. Isso é o que eu penso que é a outra dimensão desta estratégia americana em relação à China. Não é só a questão dos Direitos Humanos, mas é também o confrontar a ascensão da China e tentar reafirmar os Estados Unidos como a primeira potência mundial do ponto de vista económico e tecnológico. Mas isso leva a uma bipolarização com a China que não é conveniente. O que é preciso é integrar a China nas organizações multilaterais e é nesse quadro que deve ser avançada a agenda dos Direitos Humanos e das regras do comércio internacional. Eu devo lembrar que quando nós bipolarizamos com a China, estamos a esquecer que um dos graves problemas, ou o mais grave problema do ponto de vista de segurança para a Europa hoje, não é a China mas é a Rússia e é toda a tensão na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia. Portanto, estes são os problemas do ponto de vista estratégico mais urgentes para os europeus e também não me parece que seja vantajoso juntarmos a Rússia e a China nos braços uma da outra como 'inimigos do ocidente'.

RFI: A França pediu que haja uma coordenação a nível europeu relativamente à posição a ser tomada quantos aos Jogos Olímpicos de Pequim. Julga que a União Europeia poderia eventualmente também entrar num boicote diplomático aos Jogos Olímpicos?

Álvaro Vasconcelos: Acho que é possível que isso aconteça. Não a União Europeia enquanto instituição, mas uma concertação entre os Estados europeus que tomem uma medida comum. Essa medida comum pode ser de vários níveis: pode ser como a americana, nenhum tipo de representação em Pequim, pode ser nenhum chefe de Estado presente. Quando foi os Jogos Olímpicos de Pequim (os jogos do verão de 2008), o Presidente francês Nicolas Sarkozy esteve presente mas Angela Merkel não esteve. A resposta foi descoordenada deste ponto de vista. Pode ser que agora cheguem a um acordo, de uma representação diplomática de baixo nível ou nenhuma representação diplomática, mas de qualquer forma, darem um sinal de que estão preocupados com a violação dos direitos dos Uigures na China.

RFI: A China, antes mesmo da oficialização da decisão de Washington teceu advertências sobre a resposta que vai dar. Quais são as possíveis respostas de Pequim?

Álvaro Vasconcelos: Evidentemente que Pequim, do ponto de vista económico, do ponto de vista financeiro e até do ponto de vista diplomático, tem a possibilidade de retaliar. Não creio que seja do interesse da China, como já tem feito aqui e acolá, retaliações económicas contra a Austrália, contra a Lituânia. A China usar a retaliação económica que é o seu instrumento principal, tem consequências evidentemente a prazo negativas. É esse aspecto da bipolarização que não é útil nem para a China, nem para a comunidade internacional. Outra hipótese de nível mais baixo é a China chamar os embaixadores durante um período dos países que boicotaram diplomaticamente os jogos. Pode fazê-lo e isso evidentemente é um sinal porque diminui os canais de conversação diplomática entre os países que participariam no boicote, mas acho que assim a China também está a dizer aos países europeus em particular que aqueles que não alinharem no boicote americano, serão recompensados. Alguns países europeus que têm relações económicas e financeiras muito intensas com a China e que têm de certa forma até hoje já alguma dependência económica da China, poderão ser tentados a tentar travar uma posição comum europeia. Tudo isto faz parte das manobras diplomáticas da China, pressão e contrapressão, para tentar impedir que haja uma posição comum europeia de boicote, de alinhamento com a posição americana.

RFI: Estava a evocar a necessidade de se integrar a China no concerto das nações e, portanto, tentar fugir de um cenário de bipolarização. Até que ponto é que a China, dada a posição que ganhou, ainda terá interesse em ser integrada nas instituições internacionais, uma vez que não aderiu a muitos tratados que definem as regras de convivência entre as nações?

Álvaro Vasconcelos: Eu acho que a China tem todo o interesse nesta fase do seu crescimento, da sua ambição de se tornar a potência económica dominante. Ela fá-lo através do comércio e a Organização Mundial do Comércio (OMC) é uma organização extremamente importante para China. A Europa e os Estados Unidos encontraram na OMC os instrumentos para regular as relações comerciais com a China, por exemplo para considerar que produtos que venham de sítios onde há trabalho forçado ou campos onde estão os Uigures vão contra as regras do comércio livre e da competição justa. Faz parte instrumentos possíveis e a China dificilmente fugirá a eles. Por outro lado, há questões que são tanto do interesse da China como do interesse ocidental. Vamos pensar por exemplo na Organização Mundial da Saúde (OMS). A China criou algumas dificuldades à investigação sobre o aparecimento do covid-19 no seu território, mas foi no quadro da OMS que se conseguiu enviar uma delegação à China para tentar inquirir-se sobre o início da pandemia e, para enfrentar uma pandemia, é preciso a participação de todos. Aí a China tem um papel necessário. Por outro lado, pensemos no combate ao aquecimento global: não se pode combater o aquecimento global sem a China e a participação desse país na COP-26 e os acordos que foram feitos com a China para combater o aquecimento global mostram que é possível chegar a acordos com a China nesse domínio e que eles são absolutamente essenciais. Portanto, pensarmos que a China se vai autonomizar completamente do sistema multilateral, não me parece que isso esteja no quadro da visão que a China tem do seu papel hoje no mundo, nem corresponde aos nossos interesses porque seria impossível enfrentar estes problemas sem a participação da China, não só porque a China são mais de mil milhões de habitantes mas porque é a potência económica que é hoje.

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