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"Uma mulher ao Sol", a saúde mental no Festival de Avignon

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Até 26 de Julho, o palco do La Scierie, em Avignon, acolhe a peça “Une Femme au Soleil” (“Uma Mulher ao Sol”). Um trabalho sobre saúde mental inspirado no diário de hospitalização psiquiátrica da escritora brasileira Maura Lopes Cançado. 

Cartaz de "Une Femme au soleil" (Uma mulher ao Sol).
Cartaz de "Une Femme au soleil" (Uma mulher ao Sol). © Dalton Valerio / Luciano Cian
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Trata-se de uma produção da companhia de teatro Projecto Trajectórias. “Uma Mulher ao Sol” é encenada pelo brasileiro Ivan Sugahara e baseia-se na vida e obra de Maura Lopes Cançado, uma escritora brasileira que passou longos períodos internadas em hospitais psiquiátricos. 

O texto é construído a partir do livro "Hospício é Deus” de Maura Lopes Cançado, um diário onde a autora conta em detalhe uma das suas hospitalizações nos anos 1960.

Em cima do palco do La Scierie estão as actrizes Danielle Oliveira e Maria Augusta Montera. Sem diálogos e com voz off, as intérpretes através da dança e da expressão corporal tentam transmitir ao público o “turbilhão de emoções" que existe na intimidade de cada um.

Em Avignon, a RFI encontrou as actrizes Danielle Oliveira e Maria Augusta Montera e o encenador Ivan Sugahara, que começou por explicar que a deslocação ao sul de França serve para “tentar a voltar a ter uma sobrevivência mais digna como artistas, mas também para falar um pouco sobre o que está acontecendo” a nível político no Brasil.  

Uma mulher ao Sol

 

Como surgiu a ideia de trazer o espectáculo para o Festival de Teatro de Avignon?

Ivan Sugahara: Eu tenho uma relação longa com a França. Morei na França quando era criança, quando tinha seis anos de idade, morei um ano aqui, aprendi francês e falava francês fluentemente na ocasião. Eu voltei para o Brasil com sete anos, mas já ficou uma relação muito forte com a França. De lá para cá, eu vim visitar muitas vezes. 

O Festival de Avignon é um dos festivais mais importantes do mundo e tínhamos essa vontade de experimentar um festival como Avignon ou como Edimburgo. A gente ficou até um pouco na dúvida, porque não teria condições financeiras de fazer os dois, mas como tenho esse vínculo muito forte com a França e elas [Danielle Oliveira e Maria Augusta Montera] também têm, a gente escolheu vir para cá.

É uma peça sobre a saúde mental, como é que surgiu a ideia da peça? 

Danielle Oliveira:Já pesquiso sobre o tema da saúde mental há cinco anos. Durante três anos, fiz um trabalho de pesquisa no Instituto Municipal Nise da Silveira, no Rio de Janeiro, que é um instituto psiquiátrico. Frequentei esse espaço com um trabalho teatral que apresentava para os funcionários, pacientes, usuários da rede pública de saúde mental do Rio de Janeiro e para os visitantes.

Ao longo desses 3 anos, o que a fez foi sair da região central da cidade e ir até o hospital vivenciar isso e foi uma grande experiência. Com essa experiência, me deu vontade de fazer o contrário, de pegar neste tema da saúde mental e de o levar para fora dos muros do hospital. Para lugares onde não é discutido. 

Foi quando resolvemos aprofundar um dos relatos que usávamos nesse trabalho anterior, que é da Maura Lopes Cançado, e a gente se reuniu para fazer esse trabalho enquanto actrizes."

Como é que se preparam para este trabalho? Trata-se de uma peça intensa em que é o corpo e o rosto que transmitem toda essa intensidade.

Maria Augusta Montera: Nesses 2 anos de pesquisa e de ensaios, tivemos tempo de passar por um processo de criação mais sobre a imagem, sobre a forma e depois de vários meses de trabalho, com toda essa forma já criada e mais estabelecida, a gente fez todo um trabalho do “subtil”, ou seja, de trabalho do pensamento e de tudo que está acontecendo dentro do nosso corpo, junto com a respiração, junto com o olhar e foi assim que fomos costurando isso na parte física. 

Fomos criando individualmente também a nossa preparação e o que nos possibilita chegar nessa intensidade.

Danielle Oliveira: A gente começou primeiro fazendo um trabalho dos corpos com acrobacia, dança, luta, pilates para os corpos criarem essa conexão, essa confiança e se conhecerem. 

Foi um trabalho que criamos ao longo de dois anos de confinamento, de pandemia. O processo de criação foi muito fechado, para esse trabalho especificamente. 

Foram dois anos que a gente ensaiou, muitos meses confinados. Nós os três, morando juntos. Foi um processo de criação muito fechado.

Quando começou a estrear e a apresentar ao público, eu acho que a gente foi também aprofundando mais esse trabalho desses estados, dessas emoções, porque é o contacto com o público que, também, faz o trabalho ir para esse outro lugar.

Acabou por ser benéfico o facto de se viver a uma pandemia e o facto de estarem confinadas para terem “a mesma noção” do que é estar internada num hospital psiquiátrico?

Danielle Oliveira: A gente decidiu estudar a Maura [Lopes Cançado] antes de saber que ia entrar em pandemia. E no final das contas, acabou sendo uma surpresa nesse sentido. Com certeza que foi diferente. É claro que a gente nunca pode comparar, não é o que se vivia e acontecia nos hospitais psiquiátricos, por tudo que as pessoas passaram. 

Nós estávamos dentro de casa, com comida, com higiene, com tudo. Essas condições não são as mesmas, mas sempre quis falar da questão interna que a Maura vivia, do que ela coloca nas palavras dela. 

Fizemos esse foco da vivência interna e desse sofrimento psíquico, sentimentos e vivências. Isso é comum a todos nós. Tanto que o termo da saúde mental passou a ser muito falado durante o confinamento, era uma coisa que as pessoas não falavam tanto. Começou a chegar muito perto. Porque é uma coisa é você pensar, está lá dentro do hospital, é o louco que está lá muito longe e, de repente, você percebe, sente e vivencia coisas que também estão dentro da gente.

Maria Augusta Montera:Isso é muito interessante neste trabalho, porque por mais que tenhamos como referência o hospital psiquiátrico e os internos, a gente está falando de ser humano, do que as pessoas sentem. Da sensibilidade das pessoas, dos artistas que podem se identificar muito com esse tema, de dor, de falta de afecto… 

Durante a pandemia, acho isso aconteceu, da gente se ver em situações onde não tinha estado antes e de se deparar com coisas que temos, mas que ficam adormecidas ao longo de “uma vida normal”.

Quem é que financia esta deslocação ao festival de Avignon? 

Ivan Sugahara: Eu! É um investimento mesmo. A gente está aqui porque estamos vivendo um momento muito complicado no Brasil.

O retrocesso que estamos vivendo na área da saúde mental atinge todas as áreas. A Floresta Amazonia está sendo queimada, muitas pessoas voltando para a linha de pobreza… A gente vive realmente um momento muito complicado com o Governo [de Jair] Bolsonaro [presidente do Brasil]

Para os artistas, desde 2016, desde que Dilma Rousseff [ex-presidente do Brasil] sofreu o impeachment, que há um processo político de perseguição de artistas, de desmonte de todo o sistema de cultura e de apoio aos artistas.

Estamos aqui para a tentar a voltar a ter uma sobrevivência mais digna, como artistas, mas também para falar, um pouco, do que está acontecendo no nosso país. 

Ao olhar para esse diário e para as coisas que ela [Maura Lopes Cançado] denúncia, temos a sensação de que aquilo é um horror e que pertence ao passado, mas infelizmente não. Por exemplo, a implementação nos últimos anos de uma série de comunidades terapêuticas que nada mais são do que novos hospícios disfarçados de centros de tratamento, ligados com a questão da igreja evangélica, mostram que estamos vivendo um momento muito grave na área da saúde mental e isso tem que ser falado.

Isso é apenas uma das coisas que poderíamos falar, porque tem tantas coisas gravíssimas acontecendo no nosso país.

A gente está aqui também para respirar um pouco. Infelizmente, no Brasil, está difícil respirar de tão complexas que estão as coisas.

Resolvemos fazer esse investimento. Felizmente tinha algum dinheiro guardado e viemos tentar internacionalizar o trabalho. Estamos a falar de uma realidade brasileira, mas falamos do universo interior, do sofrimento psíquico que é comum a todo o mundo. O que é que é a loucura? Todos nós quase que enlouquecemos neste período de pandemia.

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