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Turcos vão escolher entre “duas visões de sociedade”

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Domingo é dia de eleições presidenciais e legislativas na Turquia. Pela primeira vez em duas décadas, Recep Tayyip Erdogan enfrenta a ameaça de sair do poder perante Kemal Kiliçdaroglu, candidato de uma coligação de seis partidos. Em jogo estão “duas visões de sociedade”, diz o analista José Palmeira, que admite que as sondagens falam na possibilidade de vitória de Kiliçdaroglu, “o máximo denominador comum entre as forças políticas que se uniram para criar uma força alternativa a Erdogan”.

Presidente turco Recep Tayyip Erdogan e o seu principal adversário Kemal Kilicdaroglu. Sanliurfa, Turquia, 28 de Abril de 2023.
Presidente turco Recep Tayyip Erdogan e o seu principal adversário Kemal Kilicdaroglu. Sanliurfa, Turquia, 28 de Abril de 2023. AFP - OZAN KOSE
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RFI: "Pela primeira vez em duas décadas, Erdogan poderá realmente ser destituído? Qual é o elemento central nesta campanha?"

José Palmeira, professor de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade do Minho: "Eu diria que o elemento fundamental nesta, como noutras campanhas eleitorais, é a situação socioeconómica da população. Quando uma maioria da população está agradada com a sua situação socioeconómica, tende a renovar o poder a quem o está a exercer. Essa é a grande dúvida porque a Turquia tem tido uma certa evolução, do ponto de vista económico, que nem sempre é vista como positiva para uma franja da população. Isto é, criam-se algumas desigualdades: há cidades como Istambul onde o nível de vida é comparável a várias capitais europeias, mas no interior da Turquia não há esse mesmo sentimento. No fundo, vamos ver quem é que vai prevalecer: se são aqueles que acham que Erdogan tem tido uma atitude positiva ou se, pelo contrário, são aqueles que consideram que a sua perpetuação no poder não está a produzir os resultados esperados."

"Falou em perpetuação do poder. Esta pode ser a primeira vez em duas décadas que Erdogan poderá ser destituído?"

"As sondagens indicam que existe essa possibilidade. É verdade que quem observa de fora, como é o meu caso, Erdogan é sobretudo avaliado pelo papel que tem tido no plano internacional, por exemplo, na mediação do conflito na Ucrânia. Aliás, está a decorrer em Istambul uma negociação entre a Ucrânia e a Federação Russa a pretexto da renovação de um acordo de cereais. A Turquia tem tido um papel também ao não permitir que a Suécia tenha entrado já, neste momento, para a NATO, só a Finlândia é que o conseguiu. E isto conduz-nos ao problema curdo que é algo que na Turquia tem implicações internas na medida em que uma parte da população revê-se nesta posição de força de Erdogan face aos curtos, mas outra parte não.

Por outro lado, o estilo autoritário de Erdogan também tem, dentro da sociedade turca, apoiantes e quem rejeite essa essa sua postura. Aliás do ponto de vista religioso, Erdogan recuperou um certo islamismo que o fundador da República Turca, Kemal [Atatürk], tinha de certa forma afastado, transformando a Turquia numa república secular. São todas estas tensões que, naturalmente, pesam na hora de votar, embora a questão socioeconómica seja aquela que, do meu ponto de vista, prevalece."

"Falou em alguns “trunfos” de Erdogan, mas as eleições realizam-se num contexto de grave crise económica que assola a Turquia há cerca de uma década. Até que ponto esta crise pode ter um peso nas urnas?"

"Certamente que pode. Aliás, o recente terramoto que aconteceu no sul do país veio também evidenciar que a Turquia tem um conjunto de fragilidades. Como eu disse há pouco, há uma certa dicotomia na Turquia entre uma Turquia desenvolvida - uma Turquia que há poucos dias inaugurou a sua primeira central nuclear, por exemplo, com tecnologia russa de resto; que anunciou um porta-aviões preparado para acolher drones; que também acabou de inaugurar o maior navio de guerra turco.

Isto é, temos uma Turquia tecnologicamente avançada, mas temos também uma Turquia rural com muitos problemas. Certamente que essa dicotomia se vai evidenciar nesta eleição. É verdade que a questão económica, muitas vezes, é mitigada porque se diz que é induzida do exterior, que são fenómenos externos, mas sabemos também que há factores de natureza interna e, neste caso, Erdogan poderá ser responsabilizado por isso."

"A crise foi marcada pela inflação recorde, pela desvalorização da lira. Tudo isso pode induzir os eleitores na hora do voto?"

"Exactamente. O fenómeno socioeconómico não é típico só da Turquia, acontece em todos os actos eleitorais, e tem uma influência muito grande. Naturalmente que haverá outro tipo de eleitores que também vão valorizar o facto de o sistema democrático turco ter sido bastante condicionado pelo presidencialismo de Erdogan, que introduziu este sistema de governo em 2017. Há um poder centralizado na sua figura. O regime de Erdogan domina em grande parte a comunicação social, por exemplo. Nesse aspecto, podemos dizer até que estas eleições sofrem de um certo condicionamento democrático por via disso. Erdogan é um líder que tem uma predominância sobre o sistema político muito significativa. Se a eleição decorrer de forma democrática, poderá não ser suficiente para garantir a reeleição, mas também lhe dá uma certa vantagem face ao seu adversário principal."

"A grande promessa de Kemal Kilicdaroglu é, precisamente, o regresso ao sistema parlamentar com poderes reforçados. Quem é este adversário que ameaça o poder do actual presidente?"

"Há quem diga que ele foi o máximo denominador comum entre as forças políticas que se uniram para criar uma força alternativa a Erdogan. Não é, porventura, se calhar, o líder ideal para concorrer com Erdogan, mas é o líder possível. É alguém que tem uma carreira política longa, que tem várias derrotas no seu currículo, mas é alguém também que é visto como um moderado, alguém que é capaz de fazer uma transição pacífica para um regime mais democrático, mais aberto, mais secular e que é capaz de aproximar também a Turquia mais do Ocidente, quer em termos do maior comprometimento com a NATO, quer de uma maior aproximação à União Europeia - que há anos a Turquia ambicionou integrar, simplesmente a própria União Europeia não demonstrou grande abertura para que isso tivesse lugar.

Eu diria que é, porventura, o rosto de uma Turquia mais moderna, mais ambiciosa que este líder encabeça, com o objectivo de aproximar mais a Turquia do mundo ocidental e da União Europeia, em contraponto com Erdogan, um líder porventura diferente, mais empenhado numa Turquia autónoma entre a União Europeia e a Federação Russa, mais capaz de ter protagonismo na cena internacional do que, porventura, se o seu adversário vencer estas eleições."

"Kiliçdaroglu conta com o apoio do Partido Democrático Popular, o principal partido pró-curdo, e de Selahattin Demirtas, antigo líder deste partido e uma das maiores figuras da oposição, que está preso desde 2016. Além disso, a coligação que lidera, de centro-esquerda, é composta, na sua maioria, por partidos de direita, quer mais liberais, quer conservadores e islamistas. Como é que um partido de centro-esquerda se une a partidos conservadores de direita e até que ponto esta coligação pode derrotar Erdogan?"

"Esta coligação engloba forças que, em condições normais, seriam adversárias. Acontece que há um objectivo maior que colocam em primeiro lugar que é derrotar Erdogan. Derrotar Herdogan é o seu primeiro objectivo. Aliás, se esta coligação vencer, poderão depois vir ao de cima algumas divergências na medida em que inclui sectores mais moderados, mas inclui outros que não têm o mesmo empenhamento do ponto de vista daquilo que é o futuro que ambicionam para a Turquia. Nesse sentido, há aqui um objectivo magno que é a derrota de Erdogan e tudo o resto acaba por ser um pouco secundarizado."

"Mas se Kemal Kiliçdaroglu for eleito, haverá uma mudança significativa face a Erdogan?"

"Poderá haver. A dúvida é se a população turca prefere um líder mais autoritário como Erdogan, que apesar de tudo pode garantir à Turquia uma certa estabilidade ao nível do exercício político, uma vez que o regresso ao parlamentarismo poderá ser também um regresso a uma maior discussão, a uma maior participação e, porventura, a uma maior dificuldade em governar a própria Turquia. Isto é, uma parte do eleitorado poderá temer que aconteça na Turquia aquilo que no passado já existiu, que é um conjunto de divisões que acabam por afectar o próprio desenvolvimento do país. Nesse sentido, são dois perfis bastante diferentes que se colocam como opção aos eleitores turcos no próximo domingo."

"Se Kemal Kiliçdaroglu vencer, o actual Presidente Erdogan vai ceder o poder de forma pacífica?"

"Eu julgo que, apesar de tudo, sim. Isto é, Erdogan não beneficia em ter uma atitude semelhante àquela que Trump teve nos Estados Unidos ou Bolsonaro no Brasil.  Não me parece que isso seja da sua parte inteligente, na medida em que ele tem 69 anos mas teria possibilidades de voltar ao poder, caso acontecesse aquilo que é o cenário que ele admite: em caso de vitória dos seus adversários, que a Turquia entraria numa situação de crise, numa situação de ingovernabilidade.

Pelo contrário, o seu adversário promete uma primavera, isto é, uma abertura do regime e um crescimento económico que permita à Turquia aproximar-se mais do modelo de vida ocidental e dos países da União Europeia.

No fundo, são estas duas visões diferentes de sociedade que se colocam aos eleitores: uma Turquia, porventura, mais autoritária, mais autónoma, mas mais estável, ou uma Turquia mais democrática, mais aberta e que corre o risco certamente de não ser tão estável do ponto de vista político, mas que também promete crescimento económico e em que o modelo ocidental é a sua bandeira."

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