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Avignon: Público interpreta “partitura poética” de Sofia Dias e Vítor Roriz

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“Paysages Partagés” [“Paisagens Partilhadas”] é um conjunto de sete peças na floresta criadas por vários artistas europeus e pode ser visto até 16 de Julho no Festival de Avignon. Há esculturas musicais, imersões sonoras e muito espaço para pensar a natureza. Os portugueses Sofia Dias e Vítor Roriz conceberam um audioguia poético e coreográfico para o público, uma “deambulação mental” em que o público é “tanto observador como intérprete”.

Vítor Roriz, Festival de Avignon, 7 de Julho de 2023.
Vítor Roriz, Festival de Avignon, 7 de Julho de 2023. © Carina Branco/RFI
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Sofia Dias e o Vítor Roriz assinam uma das peças das sete “Paisagens Partilhadas” do Festival de Avignon, ao lado de vários artistas europeus e a convite de Stefan Kaegi do colectivo Rimini Protokoll e da curadora Caroline Barneaud. A dupla portuguesa criou uma “partitura coreográfica e poética” em que o público é “tanto observador como intérprete ou performer”, explicou à RFI Vítor Roriz. Os espectadores-intérpretes movem-se em função das sugestões de um audioguia poético e desenham coreografias no meio da floresta, em conjunto com dezenas de pessoas desconhecidas.

Esta é também uma “reflexão que tem tanto de filosófico e de poético, mas também muito de absurdo e banal”, acrescenta Vítor Roriz, destacando que isso éum gesto de certa fragilidade e vulnerabilidade que está sempre presente em qualquer gesto artístico”. O artista admite que é “uma luta poética encontrar formatos artísticos que não conduzem totalmente a visão do público” e que se deve “dar espaço para que ele não perceba necessariamente uma mensagem explícita”. Ainda assim, diz que a sua peça tem um “sentido escondido” que quebra a sobranceria humana face à natureza para repor "a horizontalidade entre as pessoas e entre as pessoas e as rochas e as árvores”.

RFI: "A Sofia Dias e o Vítor Roriz são uma dupla de artistas/coreógrafos que colaboram desde 2006. Criaram vários espectáculos, performances, faixas sonoras, peças radiofónicas, vídeos, instalações, experimentaram diferentes contextos para palcos e espaços não convencionais e agora imaginaram uma paisagem. Que paisagem é esta?"

Vítor Roriz, Artista/Coreógrafo: "Se tivéssemos que definir a paisagem, eu diria que seria uma paisagem mental, como um género de deambulação mental, como se estivéssemos a pensar o nosso corpo, a pensar neste lugar. Quando estamos numa paisagem natural como esta, somos atravessados por diferentes impressões, percepções, diferentes pensamentos e o que nós procurámos fazer foi um género de deambulação do pensamento como o nosso corpo também deambula pela paisagem."

"O público poderia estar à espera de os ver dançar em plena natureza, mas, no final, é o público que acaba por dançar. Que jogo foi este?"

"É muito interessante quando conseguimos devolver essa expectativa. Há uma coisa que temos notado ao longo dos últimos anos, e de algumas experiências que temos vindo a fazer, é que há uma vontade muito grande de o público participar. Não é só esta atitude passiva de observar algo e de ver um espectáculo, mas há qualquer coisa ali que nós sentimos que há uma necessidade de participação, de ser mais activo e foi a isso que nós respondemos.

Então, o público nesta performance é tanto observador como intérprete ou performer e vai seguindo essas instruções lentamente, através de sugestões muito suaves e sem abusar muito do nosso poder de sugestão. De uma forma muito delicada, vamos levando as pessoas a fazer determinadas coisas ao longo dos 34  minutos da performance e elas sentem-se activas - sim, certamente - mas também para activar um pouco a reflexão sobre o que é que é estar numa paisagem destas e uma reflexão que tem tanto de filosófico e poético mas também muito de absurdo e banal."

"Porquê absurdo?"

"É absurdo porque, às vezes, nós confrontamo-nos com algumas contradições, não é? Chegarmos no meio da natureza, num círculo de cem pessoas a fazerem uma série de gestos, há um lado que pode roçar o poético mas, ao mesmo tempo, o ridículo. Isso é que é um gesto de certa fragilidade e vulnerabilidade que está sempre presente em qualquer gesto artístico. As coisas têm a importância que elas têm se nós lhes dermos importância e se as carregarmos de intensidade com o nosso olhar, com os nossos pensamentos. É isso que também a performance toca. Ela é frágil e depende dessa postura activa, mas também dessa intencionalidade e desse olhar que dá poder às coisas."

"Mas isso, apesar de ser feito muito suavemente, acaba por destabilizar o público porque ele não está à espera de fazer todas essas posições que vocês dizem para fazer..."

"Sim, não está à espera. É certo que o público deste festival é um público também muito especial porque é um público que está muito aberto a qualquer experiência e a fazer do festival algo seu, a fazer dos espectáculos uma experiência forte. Isso é muito interessante. Não é em todos os lugares que nós encontramos isto. Há uma expectativa de ser transformado com a arte. E basta essa expectativa de ser transformado para as coisas realmente terem uma intensidade e se transformarem e transformarem as pessoas. Por isso, entre não se estar à espera e, depois, uma certa abertura para fazer aquilo que se está a ser dito, há inúmeras nuances."

"Essa transformação acontece, por exemplo, quando a peça começa convosco a dizer que o círculo formado por dezenas de pessoas é uma fronteira e, no final, em vez de uma fronteira há uma linha contínua de pessoas que dão a mão? Que simbologia tem?"

"Tem muitas. O círculo é uma forma geométrica ancestral. Nós sentamo-nos em círculo para partilhar pensamentos, para dançar, para observar qualquer coisa, para contarmos histórias uns aos outros. Por isso, há um lado que nós reconhecemos como ancestral nesta forma do círculo e, ao mesmo tempo, tem outros sentidos.  Nós quando estamos em círculo estamos alheios ao exterior ou alheios ao interior. Voltamos a proteger alguma coisa se nos virarmos para fora ou estamos a contemplar algo se nos virarmos para dentro. Há todas essas nuances e todos esses sentidos e símbolos que tentamos atravessar nesta performance.

Depois, é verdade que o círculo acaba por se dissipar ao longo do audioguia para no final haver esta longa linha que simula um género de rizoma, uma raiz que são as raízes invisíveis que estão por baixo do chão e que ligam tudo e todos. E uma certa horizontalidade entre nós, pessoas, e as rochas e as árvores e a selva. Este é um pouco um dos sentidos escondidos deste audioguia."

"Como assim?"

"Se calhar, a nossa sobranceria humana, esta consideração de que nós somos efectivamente especiais em relação a tudo o resto, se calhar foi o que nos levou a este estado um pouco extremo de alterações climáticas e de um desrespeito enorme pela natureza. Embora tenhamos alguns pruridos em dizer isto porque ao nomearmos a natureza estamos a destacar-nos dela. A performance também sugere que há uma ligação entre as coisas e que, por vezes, assumir a perspectiva dessas outras coisas - seja de uma árvore, de uma rocha - tem um lado importante de empatia, poético e também voltamos ao absurdo porque nós não somos pedras, nem árvores, mas há algo aí que nós pretendemos também passar para reformular e é preciso re-perspectivar a nossa relação com a natureza, com a paisagem."

"Isso acontece quando tiram o debate sobre o problema ecológico de uma sala de teatro fechada para a própria natureza?"

"O espaço convencional do teatro tem um poder enorme porque concentra toda a nossa atenção sobre a simples acção de uma pessoa em cena, aquilo que diz, aquilo que move o seu gesto. Aqui, há uma diferença que intensifica um pouco e é preciso ter em conta que o espaço envolvente é também um actor, uma actriz, um elemento que precisa de ser considerado. Por isso os tempos são diferentes e tem que se dar espaço e é um espaço que não é imposto."

"O paradoxo aqui é que trazer o acto teatral, as pessoas e os protagonistas das peças para o espaço da natureza não é criar essa tal sensação de verticalidade relativamente à natureza? Ao impormo-nos no espaço dela, estamos a invadi-la..."

"Percebo que haja essa sensação. Essa é uma das grandes contradições deste evento e da nossa própria peça porque nós estamos a sugerir uma relação diferente com o espaço natural, mas estamos a limitar a audição do público ao impor as nossas vozes gravadas nos 'phones',  privando-o de um dos sentidos mais fundamentais narelação ao espaço exterior. Mas nós somos feitos dessas contradições. E o espaço natural não está alheio à presença humana.

Houve sempre uma interacção entre humanos e espaço natural. Há sempre um lado de transitoriedade da paisagem. A paisagem não é estanque, ela está sempre em transição. Este lugar onde nós estamos já foi uma pista de aterragem durante a Segunda Guerra Mundial e nós agora vimos para aqui e deslumbramo-nos com as árvores. Por baixo disto, há outras camadas de terra que tiveram outro tipo de existência. Daí que haja uma contradição ao invadirmos este espaço, se virmos dessa forma, mas ao mesmo tempo o espaço está sempre em movimento. Está sempre em transformação."

"Como é que encaram, na globalidade, todo este projecto das 'Paisagens Partilhadas'? As sete peças têm uma ligação entre elas? Há alguma mensagem que se destaque?"

"São peças que cada artista criou no seu contexto, mas como houve uma partilha muito grande de recursos e de perspectivas, de reflexões, elas começaram também a adquirir pontos em comum e, por isso, não é difícil encontrar um género de “ligne rouge”, uma linha condutora entre os diferentes projectos.

Se há uma mensagem ou não, haverá certamente muitas mensagens subliminares, umas mais evidentes do que outras. Mas há sobretudo questões que surgem e talvez seja esse o intuito também de fazer este tipo de projectos. E talvez do teatro e dança em geral. É mais levantar questões, do que necessariamente encontrar respostas e habitar o espaço também nesse circuito de questões. Estamos também num período onde há muitas certezas sobre muita coisa, sobre identidades, sobre nações, sobre fronteiras e a arte ocupa esse lugar das nuances, daquilo que é mais ambíguo, mais subjectivo, que é um lugar de abstracção também e que para nós faz todo o sentido.

É quase uma luta poética encontrar objectos e formas de performatividade e formatos artísticos que não conduzem totalmente a visão do público, mas que dão espaço à sua subjectividade também. E que ele seja movido e também dar espaço a que ele não perceba necessariamente uma mensagem explícita. Estamos a reclamar também esse lugar. As coisas têm que ser todas muito etiquetadas e explícitas e bem comunicadas no sentido da mensagem."

"Já estiveram em Avignon em 2015 e 2017 como intérpretes nas peças 'António e Cleópatra' e 'Sopro' de Tiago Rodrigues que agora é o director deste festival. Colaboram regularmente com ele. Em 2020, fizeram assistência ao movimento na peça "Catarina e a beleza de matar fascistas" e este ano entraram na ópera "Tristão e Isolda", de Wagner, encenada também por Tiago Rodrigues em Nancy. Que valores e força vos unem aos três e ter Tiago Rodrigues à frente do Festival de Avignon o que representa?"

"Antes de mais há uma admiração que julgo comum pelo trabalho uns dos outros. Foi isso que também que nos levou a colaborar inicialmente. O Tiago fazia um trabalho que nós achávamos, no ponto de vista do panorama teatral em Portugal - e veio-se a revelar que também no resto do mundo - era muito interessante. O Tiago também tinha um certo fascínio pelas coisas que nós vínhamos a fazer. E por isso nasceu daí. Nasceu de uma afinidade artística, mais do que uma afinidade pessoal e, certamente, depois se transformou numa afinidade pessoal, mas o que nos une é mesmo essa coisa que nós não sabemos muito bem dizer o que é, sobre o fazer artístico. Somos todos muito artesãos no sentido de trabalhar questões sobre a presença da composição, a relação com a palavra, a forma e o conteúdo.

Ter o Tiago enquanto director de um festival desta magnitude é algo que faz todo o sentido conhecendo o Tiago, mas não deixa de ser surpreendente porque tendo em conta o nosso contexto em Portugal, em Lisboa, que é um contexto bastante precário na relação com as artes e em que as pessoas estão quase numa lógica de subsistência e fazem os trabalhos com pouco dinheiro - é a filosofia do desenrasca - e o Tiago surgiu desse contexto. E depois o valor do seu trabalho deu-lhe a autoridade que ele tem agora. Ele afirmou-se sempre através do seu trabalho artístico e também deve-se valorizar isso pelo modo como ele desenvolvia e conduzia os seus processos criativos na relação quer com os intérpretes, quer com produtores, quer com programadores."

"A tal horizontalidade?"

"Sim. E uma ética muito forte, um conjunto de valores muito bem definidos. Isso é muito interessante porque mesmo ocupando cargos de poder - e aqui [Avignon] podemos dizer que é o vértice disso - ele consegue exercê-lo de uma forma muito humana e muito ética. Nós estamos, de facto, num momento histórico de grande mudança, em que as pessoas que exercem os seus cargos de poder começaram a perceber que não pode haver essa verticalidade e tem de haver formas de incluir outros modos de pensar. O Tiago está nessa recta da frente, está a inaugurar também essa forma diferente de estar à frente de um festival, de programar e de estar perto das pessoas."

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