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Vida em França

Avignon: Espectáculo “Baal” apela à desconstrução do patriarcado

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O espectáculo "Baal" é um manifesto para a desconstrução do patriarcado que recorre à dança, acrobacia e teatro. Em palco, cinco bailarinos e várias mulheres dançam, saltam, falam ou cantam movidos por frases que denunciam a violência de um modelo de dominação em que as mulheres permanecem caladas. Até que um ímpeto colectivo as leva a quebrar o silêncio e a dançar em nome da liberdade para todas e todos. "Baal" está no Festival Off Avignon até 16 de Julho. A RFI falou com dois dos intérpretes.

António Arbues e Diogo Santos. Ile Piot, Avignon, 14 de Julho de 2023.
António Arbues e Diogo Santos. Ile Piot, Avignon, 14 de Julho de 2023. © Carina Branco/RFI
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A peça “Baal”, de Florence Bernad, é inspirada num texto da escritora Leïla Slimani publicado no jornal Libération, na senda do movimento #metoo, um desejo em forma de manifesto: “Espero que um dia a minha filha caminhe à noite na rua, que faça sozinha a volta ao mundo, que apanhe o metro à meia-noite sem medo”. A RFI falou com Diogo Santos e António Arbués, dois dos bailarinos.

RFI:  O que conta o espectáculo Baal?

Diogo Santos: O espectáculo Baal fala sobre a desconstrução do patriarcado. Durante a construção do espectáculo, tivemos que perguntar-nos qual era a nossa relação com o patriarcado e foi a partir dessas questões que começámos a pesquisar ao nível corporal. Entretanto, a coreógrafa estava a desenvolver já um trabalho de escrita com o texto e com um texto também feito pelos jovens. O António esteve presente, eu não estive presente, mas foi feita uma espécie de exercício de escrita com adolescentes.

António Arbues: Era no país basco, num liceu, e o trabalho consistia em dar aulas de escrita aos alunos, adolescentes de entre 12 a 14 anos, e dar aulas de dança também durante a tarde. Então, escrevíamos todos juntos, tínhamos um professor de escrita, nós dávamos os ateliers de dança no final da tarde e o objectivo era tirar aos alunos textos e frases sobre este tema que, a meu ver, é super importante pô-lo nas escolas desde muito cedo. Foi super interessante ver que os alunos tinham uma ideia do patriarcado e do feminismo muito mais desenvolvida do que eu estava à espera. Foi surpreendente.

Diogo Santos: Tinham várias coisas para exprimir. Havia algumas raparigas que contavam a relação com o namorado, com o pai...

António Arbués: Com a mãe, familiares, violências e elas não diziam assim, de forma aberta, muitas coisas, mas nos textos reflectiam muitas coisas do que passavam em casa...

Diogo Santos: E na escola também, na sociedade, de serem vítimas.

“Somos a queda do patriarcado” é uma das frases projectadas no palco e que resume o espetáculo. Esta frase é de um dos alunos? De onde saiu?

António Arbués: Saiu dessa semana que estivemos com os alunos, uma aluna de 13 anos que escreveu muitas das frases que foram postas no espectáculo mais tarde.

Como é que vocês pegaram nessas frases para as traduzirem na dança?

Diogo Santos: Então, no início, a Florence [Bernad] tinha algumas ideias do que queria ver a nível visual. E, no início, partimos muito de uma improvisação. Ela queria trabalhar com, eu acho, com uma doçura…

António Arbués: Com a sensibilidade, doçura no movimento e nos portes...

Diogo Santos: Ou seja, entre nós somos cinco homens e criar uma dança que partiu da dança-contacto em que estávamos em contacto e, de uma forma mais sensível, lenta, de acolher o outro, de manipular, tínhamos muitos exercícios de entregar o peso, de receber, de manipulá-lo e começou por aí. Quando improvisávamos, às vezes, numa energia mais brusca, mais bruta, já refletia um pouco talvez este lado masculino da força.

António Arbués: Da violência. Era criar um pouco o contraste.

Diogo Santos: Ela queria criar um pouco este contraste nos corpos. Então, nos textos que ela estava a ler da Leïla Slimani já há muita crítica. Ela descreve várias coisas e tem várias críticas. A Florence queria procurar como é que ela conseguia chegar ao público, usando homens em palco que transportassem este tema de uma forma diferente daquilo que nós vamos aparentar ser logo, que vamos logo mostrar.

Um dos bailarinos que fala, no início, parece, no discurso dele, ser um homem exemplar, a dizer que “é um homem que ouve as mulheres”, mas as suas frases depressa se tornam num discurso misógino sob a aparência do homem exemplar. É isto que vocês também denunciam porque também abraçaram a causa quando começaram a dançar esta peça?

António Arbués: Sim, eu acho que estamos todos no mesmo pacote no princípio do espectáculo. Ou seja, temos este contraste porque a nossa dança no princípio é suave, é acolhedora e, ao mesmo tempo, as frases que ouvimos não têm nada a ver com a dança que estamos a fazer. Então, cria esse contraste de personagens e eu acho que, pouco a pouco, no espectáculo, o que a coreógrafa quer mostrar é a nossa sensibilização em relação ao tema e como é que desconstruímos, como é que nos separamos desta violência, desta masculinidade, deste conjunto. Aí é que o coro de mulheres também intervém.

Diogo Santos: Tenho outra opinião. No início, sinto que é quase um combate, estamos todos em combate, em show off, é como se estivéssemos todos numa batalha interminável, quase como se fosse a vida e tivéssemos que mostrar que somos fortes. Entretanto, quando o Franck vem e começa este texto, como ele é o mais velho e - não sei se se foi com esse objetivo - mas como ele é um homem mais velho, ele chega com uma nova consciência. É como se ele começasse a partir do fim. Ou seja, o que ele diz é onde nós queremos chegar, é o objectivo.

Vocês são homens. As vítimas do patriarcado são, sobretudo, as mulheres e as crianças, mas os homens também o são porque têm de cumprir o que o patriarcado define como deve ser o homem. Como é que vocês se se situam nesta luta? Ou não se identificam?

António Arbués: Essa pergunta, desde que começámos esta criação e mesmo antes, acho que é uma pergunta que me fiz muitas vezes. O que é ser homem? Muitas vezes, na minha infância e durante toda a minha vida, me questionei muito em relação ao “Ok, identifico-me com o meu corpo e com a minha sexualidade, mas isso define-me como homem?” Há muitas coisas no significado societal da palavra homem com que não me identifico e não estou de acordo com muitas coisas do que o homem faz hoje em dia. É uma luta constante reivindicar um bocadinho os meus direitos e as minhas ideias e, ao mesmo tempo, respeitar as mulheres, respeitar todas as pessoas.

Esta vossa dança, ou “acro-dança”, é uma dança feminista?

Diogo Santos: Sim, acho que vou responder sim porque, por exemplo, na partitura, na escrita, temos movimentos em que às vezes estamos próximos uns dos outros, às vezes temos o toque do outro, não sei se sou só um amigo do outro ou se sou um companheiro ou se sou um amante. Através do movimento pode-se ir buscar várias sensações. Acho que que não há limite nesse sentido de sexo, vamos dizer, enquanto estou a dançar não sinto que sou so um homem mas que é através do meu corpo que exploro essas sensações todas. É quase como se não tivesse limites.

A dada altura no espectáculo é projetada a frase “Dancemos, senão estamos perdidos”. O que é que isto quer dizer?

António Arbués: Isto quer dizer, na minha opinião, que a vida é uma dança e que se pararmos de dançar morremos. É preciso dançar para sobreviver e para tratar os problemas e a dança é uma forma de chegar ao outro, de exprimir, de soltar o que temos cá dentro como escrever, como cantar, é uma das muitas coisas que temos todos dentro de nós a capacidade de fazer, cada um à sua maneira.

E de desconstruir o patriarcado? Tem esse poder realmente?

António Arbués: Eu acho que é um princípio e que se na sociedade ninguém tiver medo de dançar e de cantar e de escrever o que pensa, já seria um mundo muito mais justo e muito mais equilibrado do que o que temos hoje em dia que toda a gente tem vergonha, medo de exprimir, medo de dizer ao outro o que sente, principalmente os homens heterossexuais.

E como é que vocês vieram parar a este espetáculo?

Diogo Santos: Eu vim para este espetáculo em Setembro de 2020, depois do confinamento, tinha-me instalado em França e, desde que comecei cá a viver, tinha uma colega que estudou no Chapitô comigo, que é a Maria Pinho e que fez um projecto com a Florence Bernad, e foi através dela. Ela enviou-me a audição, fui fazer e conheci o António. Nós já tínhamos cruzado uma vez em Lisboa, fizemos a audição e depois soubemos que o projecto ia ser para 2022.

António Arbués: Eu já tinha trabalhado como intérprete em outro espectáculo e foi a partir daí que soube da audição. Eu já vivia em França cinco anos antes ou seis anos antes, fiz algumas escolas aqui em França, então já tinha conhecido a Florence antes, foi mais fácil para encontrar o projecto.

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