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Artes

"A imaginação é uma arma" no "Jardim das Delícias" de Avignon

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“Le Jardin des Délices”, do encenador francês Philippe Quesne, é descrito pelo Festival de Avignon como “uma epopeia retrofuturista, entre bestiário medieval, ficção-científica ecológica e western contemporâneo”. Este é “um jardim das delícias” surrealista, num espaço natural, e inspirado numa pintura de Jérôme Bosch. Um dos actores é o português Nuno Lucas que canta “Inquietação”, de José Mário Branco, porque diz que o espectáculo é “uma viagem pela imaginação” e “a imaginação é uma arma”.

Nuno Lucas, Carrière de Boulbon, Avignon. 10 de Julho de 2023.
Nuno Lucas, Carrière de Boulbon, Avignon. 10 de Julho de 2023. © Carina Branco/RFI
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RFI: Esta peça descreve “uma inquietação” como a música de José Mário Branco que canta? Quem é que escolheu a música?

Nuno Lucas, Actor: Na verdade, fui eu que escolhi a música porque, de facto, considero que a peça tem algo de exploratório, de indefinido e, por isso, para além de ser um grande fã de José Mário Branco e de achar que essa canção se adequa muito àquilo que estamos a fazer porque chegamos com este autocarro num sítio árido, no meio de nada. Então, de repente, essa viagem contém também todas essas inquietações, essa eterna procura, mas ao mesmo tempo não há um fim, é quase como um movimento perpétuo. E por gostar muito desta canção. Então, tem estas duas coisas e o Philippe [Quesne] teve a sensibilidade de perceber e depois também tive a possibilidade de traduzir, claro, porque é em português.

“Há sempre qualquer coisa que está por acontecer, qualquer coisa que eu devia perceber”, diz a canção... Como é que se percebe, e se quer fazer perceber, a história desta peça?

Esta peça é inspirada, ou tem como ponto de partida mais do que como inspiração global, um quadro do Jérôme Bosch, o “Jardin des délices”, daí o nome da peça. O que acontece é que o encenador, Philippe Quesne, ele também é cenógrafo e parte muito do visual. Normalmente, instalam uma situação num lugar e, a partir daí, muitas coisas acontecem. Por isso é que eu digo que é inspirado. Daí que é uma pincelada para explorar diferentes partes, de poesia.

O quadro, em si, é muito rico e é muito complexo. É um tríptico e nós tivemos a oportunidade de o ver. Ele tem muito detalhe e, por isso, é fazer uma peça que não seja literal, mas que utilize essas diferentes dimensões, esse tal surrealismo. É uma peça que, na verdade, é quase um convite à imaginação. É o que eu acho porque eu acho que esta peça não tem uma interpretação, não tem um ponto de vista. É uma proposta que se coloca na mesa para tentar ser compreendida. Tal como o quadro porque o quadro, depois de todo este tempo, também não tem uma solução, não tem uma resolução, não tem um ponto de vista, contém toda essa complexidade e dificuldade de símbolos. Daí, há várias coisas que que a peça tem.

O “Jardim das Delícias”, de Bosch, remete para um momento de transformação radical entre dois mundos na altura em que foi pintado, entre o Gótico e o Renascimento. É o que está a acontecer hoje com todas estas alterações climáticas, com a urgência ecológica? É o que vocês querem, de certa forma, também sugerir?

Eu penso que estamos, de facto, a viver um momento interessante porque é bastante indefinido. Daí também transitório. Acho que nós não temos a pretensão de dar uma resposta mas, para encontrar novas soluções, a imaginação é uma arma tal como a canção do José Mário Branco. Daí eu achar que, se calhar, a nossa única contribuição possível é a poesia, tudo o que nos permite criar outros mundos ou outras possibilidades, outras realidades a partir daquilo que é, hoje em dia, talvez uma concentração no concreto, na eficácia, naquilo que parece estanque.

Disse que sugeriu a canção “Inquietação”. Como é que construíram as personagens? Tiveram uma certa liberdade ou foi o encenador que chegou com os papéis?

Esta é a primeira criação que eu faço com ele, apesar de já ter participado em outras peças. Mas tem essa característica de ser bastante colaborativa. Somos todos que contribuímos e que criamos a peça. Ele cria um contexto, ele é muito forte na criação desses contextos, da cenografia, das qualidades de objectos, de intenções mas, depois, tudo vem muito dos actores também. Por isso é que se vê também toda esta complexidade, diferentes pontos de vista. Esta peça parece que até é um hino à diferença. Pronto, uma diferença relativa porque é sempre no mundo actual e é muito difícil de representar a complexidade, mas a peça tem essa qualidade. Daí quando nós criamos os personagens, há uma grande responsabilidade de cada actor de trabalhar e de ir afinando. Depois, é toda uma máquina que vai ser construída, mas é uma maneira muito clássica ou quase antiga de colaboração criativa de escrita.

Há elementos centrais e enigmáticos na cenografia, nomeadamente, um ovo gigante, depois aparece outro ovo gigante, o autocarro... Os ovos estão no quadro do Jérôme Bosch... Qual é a simbologia?

Eu tenho que, se calhar, contextualizar aqui, ou seja, são os 20 anos da companhia de Philippe Quesne, a Vivarium Studio. Então, há também um desejo de revisitar algumas peças antigas. Uma das últimas peças, e em que eu participei enquanto actor, é a “Farm fatale” e acaba precisamente com um conjunto de ovos que partem numa direcção. Ele tem por hábito ou tradição, muitas vezes, de utilizar o fim de uma peça para o princípio da próxima. Daí que aqui também, de alguma maneira, faz sentido porque existem ovos dentro do quadro do Jérôme Bosch. Também há uma parte no quadro que nós gostamos bastante que é uma altura em que há um conjunto de pessoas que entram para dentro do ovo. Portanto, é quase como reiniciar.  

Como vocês quase representam no final...

Exacto. Há qualquer coisa de criação, qualquer coisa que pode ser até já fossilizada, portanto, já não tem vida lá dentro mas teve vida. Contém coisas lá dentro, um passado... Enfim, há um lado bastante simbólico, de facto, eu acho que talvez é o elemento mais forte.  O autocarro é, de alguma forma, uma referência também a uma peça emblemática que é “La Mélancolie des dragons”, em que existia um Citroën, uma viatura mais pequena. Então, há assim um “clin d’oeil” a algumas peças precedentes. Por isso é uma peça que tem várias portas e janelas.

Outra porta são as citações de “O Inferno” de Dante. Depois, a dada altura, uma das personagens que diz: “Se calhar a Terra é o inferno de outro planeta”. Esta frase resume, de certa forma, todas estas pinceladas que são dadas na peça?

O lado bastante árido da Carrière de Boulbon, que é uma pedreira que tem este aspecto muito bonito, mas também há um lado humano de intervenção. Ou seja, a natureza dá este lado deserto, de uma inexistência de água, há um lado que facilmente evoca uma possibilidade de inferno, esse calor... E quem viu a peça aqui, e chegou aqui antes, sente todo esse calor e esse inferno, mas é uma questão que fica no ar.

Não há “soluções”.

Há pensamento.

E o espaço? Este é um espaço histórico. A Carrière de Boulbon esteve fechada ao festival durante sete anos, reabre este ano e o Nuno Lucas está aqui. O que é que representa para si, enquanto homem do Teatro, estar aqui num espaço emblemático inaugurado por Peter Brook há quase 40 anos?

É muito bonito porque, por um lado, há uma exigência porque há um legado do Peter Brook de quem eu gosto muito, que influenciou também a minha maneira de representar ou de estar ou de pensar, “The Empty Stage”, o espaço vazio... É claro que há também estes fantasmas que trabalhamos, este passado que também temos que lidar com ele. Não chegamos aqui e ocupamos o espaço. Este lugar, mesmo geologicamente dá para ver como é uma pedreira, as várias camadas do tempo. Então, poder também pertencer e participar, eu confesso que todos os dias venho aqui, olho para o espaço e penso: Vou-me lembrar deste espaço. Há já uma memória no presente porque é uma coisa estranha de já pensar num passado que é presente.

Saudade?

Parece que sim. Há qualquer coisa.

Em relação ao trabalho com o encenador Philippe Quesne. Já esteve numa peça anterior, agora está nesta. Como é que surgiu essa colaboração?

Bom, eu sempre gostei muito do trabalho dele e, timidamente, lá ganhei coragem um dia para lhe dizer que gosto do trabalho dele e que me inspira bastante. Nesse sentido, como também muitas vezes circulamos em festivais com outras peças, por exemplo, foi o caso com Joris Lacoste que é um encenador francês, cruzamo-nos em lugares e vão-se criando afinidades e, muitas vezes, são coincidências e sortes. Eu acho que na vida nós também sabemos que há certos lugares a que pertencemos e eu sabia que trabalhar com ele é um lugar muito natural. Daí que - pode acontecer ou não, neste caso acontece - e eu estou muito feliz. É uma grande honra para mim poder, de facto, fazer parte desta peça, de trabalhar com ele e estou muito feliz. Estou muito feliz, sim, confesso.

Está, pela primeira vez, no Festival de Avignon?

É a primeira vez, sim, e eu nem sequer tive a oportunidade de ver o festival antes, por isso, entro um bocadinho de rompante. Nós estamos tão absorvidos aqui, nós estamos em Boulbon, a 14 quilómetros de Avignon, não tive oportunidade de ver espectáculos porque estamos muito focados em fazer isto neste momento. Mas, sim, é uma grande alegria, naturalmente, ainda por cima com o Tiago Rodrigues na direcção. É uma bela coincidência.

Depois deste espaço mítico, onde é que vão representar uma peça que exige tanto espaço?

Ainda vamos para outro espaço mítico. Vamos à Acrópole de Atenas. Aqui são 1200 espectadores, lá serão 3.500. Eu acho que é uma peça que propõe sempre um desafio. Depois dessas representações em Atenas iremos à Trienal de Duisburg, na Alemanha. Aí sim, é o primeiro confronto de adaptação da peça a um espaço teatral. Eu acho que há sempre coisas a ganhar e a perder, há uma qualidade que o teatro tem, o silêncio, que um espaço aberto não permite necessariamente porque é tão potente e é tão forte a natureza que dispersa às vezes. É uma questão sonora também. Estou muito curioso para saber como é que a peça vai acontecer, mas eu acredito por experiência, profundamente, eu até acredito que vai ser mais interessante.

“Le Jardin des Délices” está no Festival de Avignon até 18 de Julho.

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