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Artes

Avignon: "Antígona na Amazónia é o não à violência”

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“Antígona na Amazónia”, do encenador suíço Milo Rau, inscreve-se na procura contínua de um teatro da resistência. A peça faz um paralelo entre a tragédia grega e a tragédia universal da destruição da Amazónia, a partir do massacre de 17 de Abril de 1996 de activistas do MST. Esta Antígona é “o não contra o sistema” e contra a violência, explica o músico Pablo Casella que esteve à conversa com a RFI, juntamente com o actor Frederico Araújo. A peça está no Festival de Avignon de 16 a 24 de Julho.

O actor Frederico Araújo e o músico Pablo Casella. Festival de Avignon, 15 de Julho de 2023.
O actor Frederico Araújo e o músico Pablo Casella. Festival de Avignon, 15 de Julho de 2023. © Carina Branco/RFI
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“Antígona na Amazónia” volta a mostrar a convicção de Milo Rau de que “não basta representar o mundo, é preciso mudá-lo”. A obra cruza a tragédia grega e a mítica Thebes com a província do Pará, no Brasil, onde a selva da Amazónia vai sendo destruída pelos grandes grupos industriais. Milo Rau junta actrizes e actores brasileiros e belgas, activistas indígenas e membros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A tragédia acontece em cima do palco, mas também é-nos trazida pelos planos filmados e projectados num “ecrã-tríptico” que transporta o público para a reconstituição de um massacre no local onde ele aconteceu em 1996, a partir da outra reconstituição que acontece em palco. A dada altura, no mesmo palco, ouve-se a frase: “Não há mitologia e realidade. É tudo a mesma coisa.”

Esta “Antígona na Amazónia” representa “o não contra o sistema”, contra o que foi o Brasil de Jair Bolsonaro, contra a destruição da Amazónia por multinacionais e contra a violência policial, resume o músico Pablo Casella que abre a peça a cantar “nada é mais monstruoso que o ser humano”. A peça inventa um novo final para a tragédia grega e lemos a frase « Isto não é o fim » porque o MST rejeita « o suicídio final, colectivo » já que “a luta continua”. Para o actor Frederico Araújo, “Isto não é o fim” é um sinal de esperança porque as pessoas podem mudar para que outras não morram “por serem pretas, trans ou defensoras do meio ambiente”.

RFI: Vocês fazem uma reconstituição filmada no Pará no dia de aniversário do massacre de 17 de Abril de 1996, fazem também uma nova reconstituição no teatro da reconstituição feita ‘in situ’ e multiplicam as reconstituições a cada dia de espectáculo. Como é que se vive psicologicamente isto de estar sempre a “viver” a mesma violência?

Frederico Araújo, Actor: O mais difícil para mim foi a primeira vez que a gente reproduziu essa violência no Brasil, nas cenas que você viu no vídeo, o que eu vivenciei lá em Marabá. Porque além do contacto com as pessoas, com os sobreviventes, com as pessoas que fazem parte do movimento e pessoas que são amigas de alguns dos assassinados, ainda tem a questão do local, de a gente ter filmado e feito a coisa no lugar onde as pessoas foram assassinadas. Esse momento foi para mim um pouco mais difícil, até pela questão da chegada da polícia. Eu nunca falei isso nem para o Pablo, mas eu morri de medo...

Que [o massacre] voltasse a acontecer?

Frederico Araújo: Eu tinha medo de uma bala perdida, de alguém que não queria que a coisa acontecesse, que se misturasse ali no meio... E eu estava na frente. Eu não falei isso para ninguém, nem para o Milo [Rau], mas ali falei: “Meu Deus, tomara que não aconteça nada”. Ali foi o mais difícil para mim...

Aí, a realidade, a ficção, o teatro, tudo se mistura, a realidade é que vem à superfície e você fica em risco.

Frederico Araújo: Sim. Não houve uma interpretação de um medo. O medo era real e nem foi uma indicação de ninguém a dizer “Tem que ficar amedrontado”. Eu estava! E fazer aqui todos os dias, eu estaria mentindo se eu disser que é difícil como foi lá no Brasil. Lá, foi realmente difícil, eu não gostaria de fazer isso todos os dias. Aqui, como a gente tem que repetir, faz parte do nosso trabalho enquanto actor, de reprodução, reprodução, reprodução. A gente tem que entender internamente como é que a gente passa por essas emoções, como é que a gente conta essas histórias. Agora, o que é sempre complicado, mesmo aqui, repetindo nas apresentações, é lidar com esse tema, com esse conteúdo, com essas energias, com essas almas, com essas pessoas que não estão aqui, com essa história, é honrar os mortos. Então, isso eu tento fazer todos os dias, mas o trabalho mais complicado para mim foi a reencenação real no Brasil porque tinha essas camadas dos sobreviventes e do local.

Vamos contextualizar para quem não viu a peça e não puder ver a peça. O que é que ela conta (porque tem várias camadas, mais uma vez).

Pablo Casella, Músico: A peça basicamente tem três pilares. Ela tem a história da Antígona que a gente conta de facto, a história de Sófocles, a tragédia grega. Depois, tem a história do MST, principalmente focado no massacre, mas também em toda a existência do MST - tudo o que ele representa, a filosofia deles, o jeito que eles trabalham e o que o movimento representa. Tem um pouco da história do MST que também entra na peça. E tem o terceiro pilar que seria a questão da Amazónia e a questão indígena. Então, tem principalmente a questão indígena, mas também a questão da destruição da Amazónia num todo.

A Antígona - representada por uma activista no vídeo e pelo Frederico em palco - ela simboliza “o não radical”: o não contra Creonte e o não contra o próprio Estado brasileiro...

Pablo Casella: Sem dúvida. Eu acho que na nossa representação, a Antígona é o não contra o sistema e quando se fala em sistema, porque é uma coisa muito ampla, estamos focando na situação brasileira, no governo Bolsonaro, muito também, mas também no sistema da exploração da Amazónia, das companhias europeias destruindo a Amazónia, com a exploração do minério, da madeira, do agro-negócio e a violência policial. É também um não contra a violência policial que é o que o MST basicamente faz todos os anos no dia 17 de Abril, que é dizer que aqui houve um massacre da polícia, da violência da polícia contra trabalhadores desarmados numa marcha pacífica. Então, todos os anos, a gente [o MST] vai ocupar para dizer não a essa violência.

O Movimento dos Sem Terra aceitou participar na peça, a partir do momento em que a peça fosse um “teatro de resistência”. Foi assim?

Pablo Casella: Eu acho que o convite partiu do MST. O Milo [Rau] estava apresentando uma peça em São Paulo e o Milo já tem essa história de sempre ir para lugares de conflito e trabalhar os seus espectáculos ali. Tinha pessoas da direcção do MST que foram contactar o Milo e perguntaram porque a gente não faz uma coisa juntos. E depois, claro, com várias conversas, vários anos passaram até que se chegou à ideia de Antígona e a ideia do Pará para focar mais no massacre. Mas a ideia era fazer uma parceria do MST com o Milo.

No livro “Para um realismo global”, de Milo Rau, ele diz que “não há nada mais novo do que o antigo”. Você aqui representa Antígona e também o irmão de Antígona, Polinice. Concorda que esta peça não poderia ser mais actual e que faz sentido ela transpor-se para Amazónia, que há a necessidade de um não radical na Amazónia?

Frederico Araújo: Sim, eu acho que Sófocles e esses autores clássicos, Eurípedes, essa galera é meio vidente... Shakespeare, Tchekhov, Brecht, essa galera não estava só lá naqueles tempos, está no tempo de agora e está ainda no futuro. Acho que faz muito sentido sim. Agora, o que eu acho que é mais genial no trabalho é de actualizar a questão, actualizar a história para o que aconteceu no Brasil. Obviamente que também seria possível fazer um link com outras tragédias contemporâneas. Que bom que ele escolheu o Brasil – não no sentido que bom que houve o massacre, mas que bom que ele fez essa escolha pelo Brasil. É graças a isso que a gente está aqui contando a nossa história como brasileiros - não a nossa história porque eu não vivi isso - mas eu acho que sim, que revisitar o passado é uma óptima forma de a gente entender o presente.

A maneira de trabalhar do encenador Milo Rau é incorporar-se no meio e fazer uma imersão total. Tanto é que houve um manifesto que ele escreveu em que ele proibia a adaptação literal dos clássicos e o texto original só deveria constituir 20% de representação. Como é que foi a criação desta peça, a criação da sua própria personagem, a criação dos diálogos? Vocês fizeram diálogos em conjunto?

Frederico Araújo: O processo está no espectáculo final. O processo faz parte do produto final. A partir do dia 1 de ensaios, a gente tinha o texto de Sófocles, o original, digamos, mas eu tenho a sensação que tinha brechas e espaços para coisas novas entrarem e essas coisas novas entrando, eu acho que a gente não tinha uma busca de criar material dramatúrgico. É na própria vivência dos seres humanos, ao longo de dois meses, que coisas acontecem, que histórias são contadas e escritas e encenadas. A própria ausência da actriz que fazia Antígona, incorporada agora no produto final, era uma coisa que a gente nunca pensou.

A Kay Sara [prevista inicialmente nas representações em palco]...

Frederico Araújo: É um teatro muito vivo. É vivo no sentido de a gente lidar com os problemas e fazer uso do teatro para transformar esses problemas. A criação dos textos teve criação. O Pablo escreveu bastante texto. Eu, sendo muito sincero, não escrevi textos, eu dei pitacos [palpites], eu falei: “Ah, isso combina mais aqui, isso combina mais aqui”, eu troquei algumas palavras, eu troquei algumas frases. Mas a minha história biográfica, quando eu a conto, também foi um trabalho de genialidade do Milo. Foi ele que escreveu, a partir das entrevistas, a partir das trocas.

Porque você diz na peça: “No Brasil, quando se é preto pode-se morrer a qualquer momento, por isso é que eu estou feliz por morrer em palco”...

Frederico Araújo: Sim. Essa frase foi uma proposição minha. Mas o texto todo, ele chegou com uma página e a gente fez modificações ao longo. Mas o Pablo tem um trabalho autoral maior, de escrita de texto, maior do que o meu.

Pablo Casella: Sim, mas foi uma parceria também com o Milo [Rau] e com a Marta [Kiss Perrone] e com o Giacomo [Bisordi]. A gente foi trabalhando os textos assim. O Milo dava muita liberdade para a gente trabalhar os textos. Às vezes, alguns textos nasceram de improvisação, outros de entrevistas. Então, você recebe o texto, tem a primeira ideia e você trabalha-o até onde ele está representativo do que você quer.

Há uma das primeiras frases que você diz, que vem de Antígona, e que é marcante, que é: “Há coisas monstruosas, mas nada é mais monstruoso que o ser humano” e é uma das frases que o coro que você dirige na reconstituição no Brasil também canta. Porquê insistir tanto nesta frase?

Pablo Casella: A grande ideia era mostrar como o absurdo do poder de Creonte é um traço humano. Ele vai contra a lei dos deuses e é a mesma coisa quando o [Ailton] Krenak fala que a gente está indo contra a lei da Natureza. O céu vai cair. Quer dizer, a nossa monstruosidade humana vai além da harmonia que existe na natureza e no universo. A peça passa toda por esse lado. O Creonte insiste numa autoridade que é monstruosa, assim como a polícia insistiu numa autoridade ao abrir fogo contra pessoas desarmadas numa estrada.

E depois há o contraponto, que é quando vocês estão a fazer a reconstituição e chega a polícia, como o Frederico contou. Há uma activista que começa a falar com a polícia para explicar que vão só fazer a reconstituição e a polícia acaba por aceitar. Aí, ouvimos a frase: “Esta é a magia do teatro que resiste à violência ». No final do espectáculo, vemos também a frase “Isto não é o fim”. Ou seja, estas duas frases são autênticos manifestos políticos. O que é que elas querem dizer? Que o teatro pode ir àquele sítio onde a política não chega?

Pablo Casella: Eu acho que não é o teatro que vai ao lugar. Eu acho que é o teatro como ferramenta de uma acção política. O MST é acção política. Tudo o que o MST vive é acção política. Não é só ocupação de terra, não é só uma marcha, é toda a filosofia do MST, é uma nova proposta de sociedade. Isso é uma acção política. O teatro é uma ferramenta super forte para isso e o MST acredita no teatro. O MST trabalha muito com o teatro. Quando a gente fala na magia do MST e na magia do teatro que resiste é porque muitos grupos de teatro podiam ter ido embora naquele momento, mas o MST fala que não, que a gente vai fazer isso aqui. Então, ela foi falar com a polícia, sabendo da responsabilidade e também do perigo - como o Frederico falou - de a polícia fazer alguma coisa. Então, tem aquele limite, mas, no final das contas, o MST sempre resiste e o teatro do MST também sempre resiste.

E depois a questão do “Isto não é o fim”... Também tem a ver com o facto de que a peça não se encerra na própria peça porque vocês fazem acções para além da peça. Fizeram, por exemplo, uma campanha “Castiguem o Nutella”...

Pablo Casella: Sim, mas eu acho que essa frase não é só isso. A campanha também é importante porque a campanha é mais representativa no sentido de a gente, quando vai num lugar, por exemplo, vai para o Brasil e tenta fazer um espectáculo, a gente quer que o espectáculo não seja o fim, que tenha continuidade e que a gente possa fazer alguma coisa mais contínua. Mas eu acho que essa frase, basicamente, o que ela representa, e que essa foi, inclusive, uma perspectiva do MST que disse: “Vamos fazer Antígona, vamos fazer uma tragédia grega, mas a gente do MST não acaba com o suicídio final, colectivo. A gente não acaba com todo mundo morto, porque a gente continua lutando. Então, a tragédia acaba, mas a gente continua”. Por isso é que quando você vê o espectáculo, o coro vai embora, o coro afasta-se da tragédia. O coro indígena também. Essa ideia do coro sempre indo embora da câmara é porque é essa ideia: o coro tem a luta para continuar a fazer. Então, a tragédia que acaba com a morte, para eles não existe, eles continuam.

E vocês reinventam um novo final, um sexto acto.

Pablo Casella: Exactamente, assim como a Ismene fala, a nossa luta só pode continuar se nos mantivermos vivos porque eles são contra a ideia de que a gente se suicida e que acabou. Eles nunca desistem. Então, “Isto não é o fim” é a mensagem que a gente está dando, não é a tragédia, é uma representação, é um simbolismo dessa luta de poder, mas o MST, os indígenas, a luta social no Brasil, ela continua, não acaba com um suicídio.

Frederico Araújo: Eu vejo como uma esperança no futuro. Posso ser um pouco ingénuo, mas “Isso não é o fim”, para mim, é que o futuro cabe-nos a nós, agindo, mudarmos, e que outras pessoas não morram por serem pretas, trans ou defensoras do meio ambiente. Para mim, « isto não é o fim » é mais olhar para o futuro com um pensamento mais esperançoso.

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